O papel do investimento social privado em meio à pandemia
Na minha trajetória como empreendedora que atua na área de impacto social, passo uma boa parte do tempo traçando estratégias para captação de recursos que podem financiar as iniciativas da plataforma Pretahub, hub de criatividade e inventividade preta que realiza diversas atividades e eventos para empreendedores negros, entre eles a Feira Preta.
Diante das dificuldades deste universo, no ano de 2014 decidi voltar para o mercado corporativo para ter um pouco mais de estabilidade financeira após o nascimento de minha filha. Passei a ocupar o cargo de coordenadora de investimento social privado em uma grande empresa. Exatamente do outro lado da mesa, dessa vez eu era a responsável por selecionar os projetos que a marca iria apoiar.
Nessa época, comecei a me interessar pelo que as áreas de sustentabilidade e responsabilidade social das empresas chamam de ISP - Investimento Social Privado, aporte financeiro que, de forma planejada e voluntária, apoia projetos de interesse e impacto públicos e que possam ter seus resultados medidos.
Todos os aprendizados que carrego deste período trazem uma reflexão importante para qual seria o papel do ISP em um momento como este que estamos passando.
Para propor essa conversa, precisamos passar por um brevíssimo histórico. Nos anos 80, o foco foi o combate à fome e à miséria, com a presença marcante do sociólogo Betinho e a participação da filantropia. Na década de 90, o tema Direitos Humanos ganha força. As organizações saem um pouco da filantropia, da questão da comida só pela subsistência, e começam ampliar a agenda e falar de justiça social, mas não ainda de justiça racial. No início dos anos 2000, começa-se a falar de organizações sociais em territórios que trazem uma agenda de educação e cultura, com oficinas para jovens, que se profissionalizam e formam grupos culturais. Nessa década, destaco a passagem do Gilberto Gil no Ministério da Cultura, apesar de uma breve passagem, fez transformações importantes para a democratização e acesso aos mecanismos de cultura e as discussões sobre a estruturalidade das questões raciais e de classe ganham mais espaço, visibilidade e profundidade no debate público. Em 2010, as agendas começam a mudar. A população negra ganha perspectivas econômicas: são estabelecidos o sistema de cotas nas universidades, as políticas públicas de reparação, o estatuto de igualdade racial. A população negra frequenta a universidade, forma redes e surgem muitos coletivos ligados à intelectualidade e cultura. É também nesta década que, fortalecida, começa a se autodeclarar preta e parda nas pesquisas, o que a torna maioria da população.
Tudo isso culminou numa forte transição cultural no posicionamento de raça e classe. Pessoas historicamente vulnerabilizadas reivindicam lugares na política, nas empresas, nas artes, na liderança dos meios de produção e decisão nas mais diferentes áreas. Se há um tempo falavam basicamente sobre violência, hoje querem também falar sobre tudo o que as atravessa. Querem e falam sobre amor, família, trabalho, saúde mental e bem-estar, abundância e planejamento financeiro, ciência... sobre os mais variados assuntos.
Mesmo com estes avanços, matérias recentes nos mostram que os maiores impactos da pandemia do novo coronavírus foram nas regiões periféricas, impactando principalmente pessoas negras. Não apenas no número de casos e mortes, mas também na educação, com as dificuldades de acesso ao ensino à distância/online (a digitalização da educação favorece a quem?), no empreendedorismo, com os impactos na renda provocados pelo necessário isolamento social, pelo alto risco de contágio, diante das condições de moradia e saneamento, entre outros.
Tudo isso me faz refletir que sim, a união do investimento social privado com o advento de políticas públicas que garantem diferentes acessos às populações historicamente marginalizadas na sociedade, trouxe sim desenvolvimento e distribuição de renda. Mexeu, um pouco, nas estruturas. Mas onde será que podemos evoluir? Como podemos todos juntos seguir uma trajetória de crescimento que atenda a todos e não perpetue as desigualdades, principalmente em momentos de crise como este?
Minha percepção ecoa o que dizem discussões recentes de quem atua nesta área. Quem vivencia os problemas é que sabe solucioná-los. Isso nos dá pistas de que o investimento social privado precisa estar atento ao que produzem e criam as populações vulnerabilizadas.
Vejam um dado interessante: o Instituto Locomotiva tem feito várias pesquisas sobre o comportamento das diferentes camadas sociais durante a Covid-19 e, uma delas trouxe a seguinte informação: "Proporcionalmente, a favela, que compreende boa parte da população das classes C, D e E, doou mais do que o asfalto, mais do que as classes A e B. É nas periferias que encontramos um senso arraigado de comunidade, uma lógica de reciprocidade. Sem dúvida alguma, o Brasil tem muito a aprender com a favela", comentou Renato Meirelles, diretor do Instituto, em entrevista recente ao jornal "O Estado de S.Paulo".
Considerando que o tecido social que nos organiza enquanto povo é formado por diferentes pessoas, de diferentes origens e recursos, é importante não nos escapar do óbvio. Para que cresçamos de forma sustentável, sobretudo neste momento e no porvir, cada indivíduo precisa compreender sua corresponsabilidade como parte de um todo. Estendendo isso ao investimento social privado, é fundamental que ele invista diretamente em quem sabe distribuir. A população negra e periférica não se vê mais como beneficiária.
Fica a dica!
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