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Anielle Franco

Carta aos leitores: Por uma maior humanização e empatia entre nós

Anielle Franco - Arquivo Pessoal
Anielle Franco Imagem: Arquivo Pessoal

19/10/2020 04h00

Caro/a leitor/a,

Antes que estranhe a escolha temática da coluna desta semana, entenda que me vi intimada a responder alguns comentários negativos que se acumulam nas caixas abaixo de minhas postagens passadas, que vão de xingamentos a acusações de fake news. Quero nestes breves parágrafos tentar dar uma resposta - não com ódio -, mas com um chamado a uma reflexão coletiva sobre o local da "humanidade" e "empatia" uns com os outros.

Não tenho pretensões de mudar radicalmente quaisquer opiniões políticas, ademais, a realidade desta tentativa é fomentar o pensamento sobre uma "política" deslocada de uma disputa ideológica polarizada. Quero que pensemos juntes no fazer político do dia a dia, ou seja, na nossa capacidade de exercer um imaginário de acesso, de oportunidades, da busca por um bem-estar geral voltado às nossas famílias e demais entes queridos.

Primeiro, quero que saibam que por dentro sou como vocês. E no meu dia a dia, quando batalho e trabalho por dias melhores, sou professora, mãe, jornalista e uma filha caçula que trabalha desde os 17 anos para ajudar minha mãe. Também sou de carne e osso, sangro, sofro, choro e sorrio. Nossa diferença pode ser estruturalmente vista por fora. Você provavelmente deve ter me conhecido a partir de uma tragédia que cortou e corta o cotidiano de minha família. Afinal, foi em março de 2018 que minha vida mudou radicalmente, quando minha irmã, Marielle Franco, foi brutalmente assassinada junto de seu motorista Anderson na cidade do Rio de Janeiro.

Não quero me ater na dor em si, este não é um texto para te comover, ou nem quero que você comente "olha lá a vitimista" ou "lá vem o mimimi", pois já entendi que às vezes esse argumento vazio é derivado da ausência de uma profunda reflexão crítica sobre nossa realidade ou até da falta de conhecimento sobre aquela pessoa. Entenda, todo e qualquer discurso de ódio é provocado por algum símbolo, gesto, jeito, ou até mesmo o fato do "existir". Sei que meu corpo carrega alguns símbolos que causam aversão a muitas pessoas. Mulher, mãe, negra, irmã de uma vereadora de um partido de esquerda, e cria da favela.

De início, o importante é saber que existem MILHARES como eu, mulheres que sofrem violências cotidianas, que têm seu corpo deslocado da noção de humanidade, apenas por ser quem são. Viver uma vida subumana é quase impossível, mas viver a anti-humanidade dói, adoece e nos mata aos poucos, e aos montes. Por isso, quero que você me conheça melhor.

Saiba que, como disse acima, sou professora (como imagino que você já teve uma em sua vida), tenho 36 anos, gosto muito de escrever, sou escritora, esportista, palestrante, mãe de duas meninas, e agora diretora de uma instituição de direitos humanos que leva o nome de minha irmã, o Instituto Marielle Franco. Sou apaixonada por vôlei, comecei a praticar o esporte aos oito anos e aos 16, com muito esforço, ganhei uma bolsa para estudar e jogar nos Estados Unidos, foi lá que me tornei mestra em jornalismo e inglês pela Universidade de Carolina do Norte. Detesto injustiça, mentira, ofensas, e sigo lutando por um mundo mais justo que eu possa deixar para minhas filhas. Onde eu espero que elas entendam que o diálogo sem palavras de ódio, podem nos levar a amadurecimentos e novos entendimentos.

Prazer, sou Anielle Franco. Como você, eu tenho sonhos, tenho desejos de que a dor pela falta de respostas sobre diversos assassinatos, e o assassinato da minha irmã, cessem, mesmo entendendo que esta ausência física nunca se cicatrizará por completo. Minhas subjetividades te convidam para que reflita sobre o exercício da humanidade e empatia entre nós. Sou mãe, tia, filha, produzo cotidianamente um novo futuro para as pessoas como eu. Sou muitas, sou como tantas outras mulheres negras que estão sob o júdice da anti-humanidade. Poderia inclusive ser você. E por que você não consegue sentir como eu?