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Anielle Franco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Criança não é mãe: Pelos direitos das meninas brasileiras!

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

27/06/2022 06h00

Hoje retorno a falar sobre justiça reprodutiva e a violação de direitos sexuais e reprodutivos em nosso país, mas dessa vez, falo especificamente de direitos de nossas meninas em serem meninas, e não mães. Em 13 de junho, falei em minha coluna sobre o aterrorizante manual sobre abortamento lançado pelo Ministério da Saúde no último mês. Na última semana, ficou ainda mais nítida a atuação negligente e por vezes criminosa de autoridades que deveriam estar preocupadas em proteger nossas crianças, mulheres, e pessoas violentadas.

O caso, que mobilizou ativistas, defensoras de direitos humanos e o movimento feminista de todo o país, foi o de uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro e que estava sendo mantida em um abrigo, contra sua vontade ou de sua mãe, há um mês para que se evitasse que a mesma tivesse acesso ao aborto. O vídeo da audiência que circulou pelas redes sociais me embrulhou o estômago. Ouvi uma verdadeira sessão de tortura acontecer, e o pior, ninguém ajudar essa criança. A audiência que deveria ser para encaminhar o procedimento para acesso ao direito de uma criança pareceu uma cena de filme de terror.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer, responsável por torturar a menina de apenas 11 anos, fala coisas que mesmo uma mulher adulta, sendo vítima de violência não deveria jamais ouvir. Quem dirá, uma criança que na época em que o crime ocorreu, tinha 10 anos de idade. Frases como "Você aguentaria ficar mais um pouquinho?" e "Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal" jamais poderiam ter sido ditas em uma audiência. Falas direcionadas diretamente à criança, perguntas que buscavam não apenas coagir filha e mãe a seguirem com uma gestação, que na ocasião já estava decidido que seria interrompida, como tentavam criminalizar a conduta da mãe. Como por exemplo, quando a juíza pergunta à criança, como ela e sua mãe chamam isso entre elas, dando a entender que as mesmas poderiam não se sentir culpadas pela situação, ou de alguma forma, de fato, desejarem isso.

Como mãe de duas meninas, pensar em uma situação destas é mais que um pesadelo para mim. Estar a frente de uma autoridade que, teoricamente, deveria prezar pela proteção de uma criança e vê-la coagindo, constrangendo e torturando psicologicamente, é desesperador. O que fazer quando quem deveria lhe proteger e garantir seus direitos, é quem os retira e os ataca?

A promotora Mirela Dutra Alberton, que acompanhava aquela audiência, nada fez. Vale lembrar, que a promotora já esteve envolvida em um caso de violação de direitos de mulheres e mães, o caso Gracinha, onde uma mãe quilombola perdeu a guarda de suas filhas, porque segundo a justiça de Santa Catarina, a mesma era "descendente de escravos". Na época, a promotora trabalhava na comarca de Garopaba e mobilizou uma assistente social de sua própria comarca, que produziu um documento sexista onde chamava a mãe de "promíscua". O caso e comportamento anti éticos da justiça e Ministério Público chamam atenção uma vez que apesar de outros relatórios terem sido produzidos por outras assistentes sociais no caso de Gracinha, apenas o que desqualificava a mãe das crianças de forma sexista e preconceituosa foi considerado pela justiça.

De acordo com reportagem do portal Catarinas: "Mirela Dutra Alberton chegou a negar a identidade quilombola de Gracinha com a justificativa de que ela não vivia como tal. "Ao invés da cultura da subsistência, cujo objetivo é a produção de alimentos para garantir a sobrevivência própria e/ou da comunidade, a requerida desempenha tão somente a mendicância". Hoje, anos depois, vemos a mesma promotora com um comportamento negligente com a criança e a justiça do mesmo estado impedindo o acesso a um direito, ao invés de apoiar e garantir os direitos de uma cidadã, uma criança.

Nesses dias, algo ficou evidente: é a força dos movimentos sociais que produzirá a mudança necessária na conduta da justiça em nosso país. Depois do caso ter sido divulgado pelo The Intercept Brasil, movimentos sociais, coletivos, ativistas e organizações de direitos humanos se pronunciaram e pressionaram o Ministério Público Federal para que a criança conseguisse ter acesso ao aborto legal, e para que as condutas da promotora e da juíza fossem imediatamente apuradas. Além disso, o Ministério Público Federal também passou a investigar os motivos pelo qual o Hospital Universitário da UFSC se recusou a fazer o procedimento de aborto legal, como deveria ocorrer.

Encerramos a semana onde tudo isso aconteceu aqui no Brasil, com uma triste notícia de retrocesso nos EUA. Na sexta-feira (24) a Suprema Corte dos EUA derrubou a decisão conhecida como "Roe contra Wade", de 1973, que garantia nacionalmente o direito ao aborto. Os movimentos feministas norte-americanos, em especial os movimentos de mulheres negras, assim como as ativistas brasileiras, imediatamente se mobilizaram e posicionaram: a justiça reprodutiva para mulheres virá da mobilização de nossas comunidades e movimentos sociais, e não dos tribunais. E é com essa mensagem que quero deixar minhas leitoras e leitores, que acreditam que mulheres e meninas devem ter seus direitos e seus corpos respeitados, que acreditam que precisamos lutar por dignidade, saúde e uma vida plena