Coração Trevoso: conheça a Amazônia que anda de barco ouvindo Fiona Apple
Os rios que atravessam Belém correm alheios à pandemia que devasta sua população. Maguari, Guamá e Acará engordam, alimentados pelas tempestades que desabam dos céus tropicais da capital mais chuvosa do país. Oficialmente, mais de 800 pessoas morreram no Pará por causa da Covid-19, doença que deixou o sistema de saúde do estado em colapso e levou seu governador Hélder Barbalho (MDB) a decretar "lockdown" em dez cidades, desde o dia sete de maio.
"Ver tudo que está acontecendo me destrói de uma forma horrível", diz Monique Malcher, 31, escritora e colagista, paraense, nascida em Santarém, interior do estado e autora de "Flor de Gume" (Pólen, 2020), em pré-venda no site da editora. "A periferia morrendo. As pessoas mais pobres, pretas, indígenas, morrendo e, apesar dessa história que o vírus não escolhe, algumas pessoas podem ter um certo amparo outras, não. Isso me corta demais. Porque tive que sair do meu lugar para tentar outras coisas, para ser lida em outros lugares e esse distanciamento me faz ter mais saudades", emociona-se.
As lágrimas de que fala em nossa entrevista - seja quando leu "Insubmissas Lágrimas de Mulheres" (Malê, 2016), de Conceição Evaristo, seja quando ficou sabendo que a escritora Jarid Arraes queria publicar seu livro - fundem-se aos rios do seu estado fazendo com que sua literatura seja, nas palavras de Jarid "como mergulhar as pernas nos rios do Pará e ouvir palavras que contam meninas presas em infâncias machucadas". A escritora paraense Paloma Franca Amorim, também destaca essa "umidade" quando escreve que " a experiência que tive ao ler Flor de Gume foi a de trafegar entre o cimento, o asfalto e as águas de uma terra Amazônia e de uma terra mulher".
Ribeirinho, o primeiro conto do livro já zarpa "embarcado" e é protagonizado por uma menina, paraense, que não sabe nadar, mas cuja família trabalha com transporte fluvial. Essa garota vai protagonizar outros contos da primeira parte do livro, que segue uma ordem cronológica, aproximando-se de uma narrativa episódica. "Os meus tios e meu avô trabalhavam em barco, então eu emprestei essa coisa pro livro. Mas ao mesmo tempo eu me irritava quando me apontavam como bicho do mato, da floresta. Hoje em dia não me irrita mais, eu amo."
A Amazônia de Monique tem caça de tatu, passeios no rio e ervas que curam, mas é, também, uma Amazônia gótica - criada por uma artista que bebeu das águas do indie rock, de Fiona Apple e do pós-punk e que começou a escrever compondo letras para uma banda de grunge. Essa face sombria muitas vezes é encarnada por um personagem-pai sem nome, violento e abusivo que se contrapõe à vitalidade e sororidade das personagens femininas, muitas delas mães e avós. Como numa colagem, a arte aí empresta da vida real os recortes das vidas de milhares de famílias chefiadas, nas quebradas do Brasil, por mães que trabalham e avós que criam.
As colagens, sempre verdes, que ilustram o livro, nasceram em Monique influenciadas pela estética punk e por capas do Joy Division. A escritora é apaixonada por música. Foi através da cantora e pianista Fiona Apple que ela conheceu a escritora Maya Angelou, responsável por tirá-la da letargia das primeiras semanas de quarentena: "Fiquei me questionando qual a importância de escrever. Qual a importância do trabalho que faço. Então, recebi uma mensagem da minha orientadora de doutorado. Ela me mandou um livro da Maya Angelou. Me lembrei de um poema da Maya: "Ainda assim eu me levanto" (Still I Rise, no original). Isso foi muito forte para mim. Pensei: "preciso me levantar, preciso escrever, porque a escrita também é um processo de cura."
Monique garante que sua escrita, influenciada por Sylvia Plath e predominantemente feita em primeira pessoa, não é autoficção. Mas muitos leitores discordam: "Fico rindo, significa que essa voz em primeira pessoa, que criei, é real. Recebi mensagem de gente dizendo 'Nossa você está nua ali'. Essa confusão me deixa feliz."
Além dos rios, a flora é parte importante da prosa (que muitas vezes pororoca-se com a poesia) de Malcher. Grande parte dos títulos de seus contos ("Hortelã", "Beladona", etc) são emprestados de plantas medicinais. Em "Os territórios que os pés desenharam" a narradora conversa com uma árvore que a protege. O não-humano é mais que cenário nas narrativas da autora paraense. Em outros momentos de sua produção (que também incluem zines costuradas artesanalmente como "Tristona" e "Aquenda"), Monique navega pela "política erotista". "Eu começo pensando 'tô a fim de escrever uma coisa meio erótica, quero relaxar' e, quando vejo, já estou com raiva. (risos). Esse é um ponto central quando escrevo sobre erotismo. É pensar que aquilo que parece fazer bem, talvez não faça tanto, talvez seja só um costume de um comportamento que a gente está engolindo a seco o tempo todo. O pensar erótico pra mim é muito político."
4 autoras que estão fazendo cabeça de Monique Malcher:
- Mayara La-Rocque
- Roberta Tavares,
- Gabriela Sobral
- Paloma Franca Amorim
Um teto todo nosso
Seguindo sina de zineira independente, Monique preparava-se para lançar "Flor de Gume" com recursos próprios. Tinha recebido vários nãos, alguns mais grosseiros que outros, o que a levou a iniciar um financiamento coletivo. Para a divulgação, pediu dinheiro emprestado, comprou uma passagem de ônibus para São Paulo, recortou mil santinhos com uma tesourinha de unhas e rumou para o Clube da Escrita Para Mulheres criado por Jarid Arraes (escritora cearense que venceu o Prêmio APCA 2019 com seu livro de contos "Redemoinho em dia quente").
"Há bastante tempo eu procurava obras de prosa de autoras do Norte do Brasil e fiquei muito curiosa para conhecer a escrita de Monique", conta Jarid. "Quando a reunião acabou, falei com ela e disse que gostaria muito de ler o livro. Monique tem uma voz literária muito certa de si mesma."
"Me deu vontade de chorar", diz ela tornando-se rio novamente, "Todos os dias eu agradeço à Jarid. Foi uma mulher do nordeste que me abraçou. E isso faz muito sentido na minha história. Espero ser uma mulher que abrace outras mulheres no futuro." Em entrevista para o site A Estranhamente, Monique disse que "escrever dá muito trabalho e lutar para ser lida sendo mulher, pobre e nortista, dá ainda mais trabalho."
Jarid, que foi editora do livro, também questiona a panelinha editorial que faz com que as maiores feiras literárias, as resenhas nos cadernos de cultura, os premiados e publicados em grandes editoras sejam, via de regra, homens brancos ricos: "O mercado ainda é profundamente regionalista, a maior parte dos livros publicados e divulgados são de escritores e escritoras do Sudeste e Sul do país. O que uma pessoa nordestina escreve ganha o carimbo de "regional". Mas todos os livros são escritos por pessoas de uma região e se passam em regiões, não? Monique traz uma imensa contribuição à literatura brasileira. E eu sei que ela e o 'Flor de Gume' também são importantes referências para que mais pessoas do Norte se sintam encorajadas a escrever e publicar" completa Jarid que também é cordelista e poeta.
A madrugada se esvai e o sol também se levanta como nos lembra o poema de Maya Angelou ([...] Assim como a lua ou o sol/Com a certeza das ondas no mar/Como se ergue a esperança/Ainda assim, vou me levantar[...]). Monique Malcher ainda está acordada e respondendo às perguntas da coluna Arte Fora dos Centros. Trabalha em um conto sobre uma atendente de telemarketing, primeira profissão que exerceu quando chegou em Florianópolis com R$ 200 no bolso, sem amigos importantes e vinda do norte do país. Ainda assim, segue se levantando e insistindo no vício de transformar dor em arte. Também se levantará sua Belém quando a Covid-19 e o descaso de nossos políticos passarem. Os rios também continuarão lá. Como escreve Monique: "Só as mulheres corcundas de carregarem tanta dor podem voltar, e voltam, todos os dias".
Dançando com as teclas do computador
Uma playlist com a trilha sonora que acompanhou Monique Malcher na escrita de "Flor de Gume"
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