Amaro Freitas: o gênio do piano que o estado brasileiro não matou
No Complexo do Salgueiro, o menino evangélico de pele negra e sorriso no rosto chamava-se João Pedro. Tinha catorze anos e nunca saberemos se viria a ser pianista de jazz, colunista do UOL, cientista a pesquisar vacinas ou o próximo presidente do país. João Pedro — que poderia se chamar Ágatha, Neymar, Djamila, Milton ou Amaro — foi mais uma criança negra assassinada pelo Estado brasileiro nesta segunda (18).
Catorze anos antes, em Nova Descoberta, um menino evangélico de pele negra e sorriso no rosto chamava-se Amaro Freitas. Seu sonho era tocar bateria, mas como esse era o instrumento mais disputado pela molecada da igreja Assembleia de Deus local, acabou seguindo os passos do pai e se contentando com o teclado.
"O Brasil são várias realidades. Temos um estilo de vida que vai do europeu ao estilo de vida da África. Dentro da mesma cidade, podemos observar diferentes realidades durante a pandemia. Eu estou numa cidade chamada São Lourenço da Mata, de 112 mil habitantes, zona da mata pernambucana, que é onde meus pais moram. Eles têm uma mercearia aqui. Fui criado em Nova Descoberta, que é uma periferia da zona norte de Recife, e o que eu vejo é uma realidade muito cruel."
A voz grave e calma — que alterna ora gargalhadas, ora complexas explicações sobre teoria musical — vem de um jovem de 28 anos que já viu, viveu, mais que muito senhor de hoje. Voz e o carisma, que cairiam perfeitamente bem num cantor pop, saem do corpo musical de um dos mais impressionantes pianistas brasileiros vivos, autor de dois discos elogiadíssimos pela crítica internacional — "Sangue Negro (2016) e "Rasif" (2018) — e que acaba de lançar o EP beneficente "Existe amor" com Milton Nascimento e Criolo. No disco, Amaro metamorfoseia-se em orquestra de homem só fazendo, ao piano, a cama macia para Criolo e Milton nas faixas "Cais" e "Não existe amor em SP". Completam o álbum duas músicas arranjadas pelo celebrado Arthur Verocai. "Juntos celebramos uma grande festa sonora", diz Amaro.
Responsável por revelar Freitas ao grande público, sua versão de "Não existe amor em SP" se divide em três partes e começa com uma melodia liricamente hipnotizante, que joga com a música erudita minimalista do compositor francês Yann Tirsen (famoso pela trilha sonora do filme Amélie Poulain) enquanto a voz de Deus, vulgo Milton Nascimento, canta. Na segunda parte, o homem-polvo tecla no piano um jazz a la Christian Scott & Robert Glasper, que serve de casa para a voz versátil do rapper Criolo. Tirsen e Erik Satie vem à mente ao ouvirmos os sons quase românticos que aninham a magia de Milton na faixa, mas a influência do lirismo e o flerte com a música erudita europeia tem raízes no gospel dos anos em que Amaro tocava na igreja do bairro. Sim, o lirismo de Amaro brotou nas ruas de barro de Nova Descoberta, onde aprendeu suas primeiras lições seguindo os passos do pai que chegou a apresentar-se em bailes antes de limitar-se nos louvores permitidos pela congregação.
"Eu tenho na minha cabeça muitos bregas", recorda Amaro pensando no som que vinha da casa dos vizinhos quando morava em uma casa de barro cravejada por buracos de bala. Por mais que os pais de Amaro (ambos músicos amadores) só ouvissem louvor em casa, sua quebrada lhe fornecia outras referências. "Acho que a igreja tem uma coisa do lirismo no sentido da adoração, até um pouco embranquecida, muito europeia. Muitos cantores do brega vêm dessa igreja. E aí, no brega, você percebe um outro tipo de lirismo, voltado pra sofrência com uma certa safadeza, um certo swing da rua e com a parte africana que vem no ritmo."
Amaro conta que não tinha relação com a música tradicional pernambucana na juventude, mas ecos de sua ancestralidade alcançavam-no pelos forrós, raps e funks que ouvia nas ruas de Nova Descoberta: "Um vizinho do outro morro, tinha um sistema de som tão alto que colocava Racionais pra tocar no domingo e todo Córrego do Eucalipto era obrigado a ouvir junto."
"Gospel, brega e Racionais"? Beleza, mas como surgem suas composições jazzísticas sofisticadas que a prestigiada revista norte-americana Downbeat disse serem "construídas de células dispostas em padrões intrincados, como um cruzamento entre a banda de Nik Bärtsch e o Matthew Shipp Trio"?
"Eu ganhei um DVD do Chick Corea que mudou minha vida", repete Amaro uma história que já tornou-se um clássico. O virtuose tocava teclado na banda da igreja, quando um dos integrantes lhe deu um DVD ao vivo do pianista que tocou na banda do lendário Miles Davis. Ver o que Chick Corea fazia com as teclas explodiu a cabeça do Amaro adolescente, então com 15 anos, idade que o jovem João Pedro, assassinado nessa segunda-feira, nunca vai chegar a ter. A descoberta da polifonia, das harmonias complexas e da improvisação aumentaram os mistérios que a música parecia impor ao garoto que encarava o piano como outros moleques de quebrada encaram as pipas com cerol, as peladas nos campinhos de várzea ou as madrugadas no videogame: "A infância? O período da paixão é o período da formação. [Eu via] Um mundo de aventuras naquelas teclas. Um mistério escondido... o tesouro das pretas e brancas."
Picado pelo mosquito do jazz e começando a tocar Gonzalo Rubalcaba, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, Amaro inscreveu-se no Conservatório de Música de Pernambuco. Vítima de Brasil, teve que largar as aulas seis meses depois porque os pais não tinham os trinta reais que ele precisava para a matrícula. Amaro foi se virar. Trabalhou com telemarketing; passou a tocar em bailes, casamentos e festa. A relação com a música "secular" e a possibilidade de viver de música não era algo visto com bons olhos pelo pastor da Assembleia de Deus, o que acabou afastando milagre dos teclados da igreja.
"Eu falei pro presbítero da igreja que estava trabalhando com música. E ele disse: 'Mas, irmão, você não quer trabalhar como eletricista, não?' (risos) E eu tinha passado uma vida no teclado, nunca tinha mexido com energia."
Quando começou a estudar jazz (e depois se formou em Produção Fonográfica), Amaro finalmente entrou em contato com a música popular brasileira, os ritmos nordestinos e músicos de jazzistas brasileiros como Moacir Santos, Hermeto Pascoal e João Donato. "Quando eu estava pensando em seguir na música, queria estudar na academia. Mas vi o programa da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e era uma coisa muito europeia. O francês que viesse estudar na universidade de Pernambuco, encontraria a mesma coisa que estudaria na França. A universidade não oferecia o que temos de mais rico que é a cultura pernambucana."
Já tocando piano em bares, Amaro conhece o baixista de jazz Jean Elton que se torna um grande amigo e com quem passa horas ouvindo música. Depois viria o baterista Hugo Medeiros, professor de conservatório. Estava completo o impressionante trio com quem Amaro gravou "Sangue Negro" (mais "romântico e lírico") e "Rasif" (uma viagem pelos ritmos nordestinos que Amaro e seus parceiros aceleram e reconfiguram poliritmicamente). "O Rasif é um disco onde eu presto essa homenagem ao meu estado, à minha cidade, e, de certa forma, tem essa acelerada dos ritmos e essa brincadeira da poliritmia - influências do que estava ouvindo: Vijay [Iyer], Craig [Taborn], Cecil Taylor, Thelonious [Monk], músicos que trabalharam muito o ritmo."
De Nova Descoberta para o mundo
Em 2020, Amaro já havia feito duas turnês bem-sucedidas pelo exterior, em 2018 e 2019, e planejava a terceira, quando os planos foram congelados pelo coronavírus [assista a um vídeo de Amaro tocando "Bella Ciao", enviado para teatro da Itália que receberia sua apresentação]. "A recepção da turnê internacional foi incrível. Pude entender que a música é algo ancestral e forte que quebra vários padrões. É como se eu quisesse chegar em outra galáxia e tivesse que demorar muitos anos luz, mas a música seria esse buraco de minhoca capaz de conectar minha nave com outro universo em minutos." Em Munique, o músico teve que encarar olhares racistas, enquanto caminhava pelas ruas da Alemanha, ao mesmo tempo que era ovacionado pelo público europeu todas as noites.
Para quando a pandemia afrouxar, Amaro tem mais um disco com seu trio engatilhado e, ainda, o projeto de um álbum solo brincando com um "piano preparado". Por enquanto, ele aproveita o sucesso de seu projeto musical de maior apelo popular, o beneficente "Existe Amor", capitaneado pelos cantores Milton Nascimento e Criolo. "Milton é, como o Criolo fala, esse ser de luz que só a presença já nos contagia. Ele é a pessoa que tem o olhar mais bonito que já vi. (...) Com o Criolo a gente se divertiu muito. Em alguns momentos fiquei sentado no piano e ele jogando umas rimas, criando na hora. Quem sabe não sai alguma coisa daí?"
Seria o rapper paulista o primeiro a gravar letras calcadas nas melodias intrincadas de Amaro?
"Eu conheci o Amaro através do Milton Nascimento", conta Criolo. "O Milton quando o conheceu se encantou. Ele tem um carinho muito grande por Amaro. Quando cheguei lá [no estúdio de gravação] o Amaro já estava no piano, aquecendo. E a gente meio que se conheceu e se entendeu no olhar."
"Outra coisa importante do disco é que trata-se do encontro de três gerações de pessoas negras", diz Amaro, "que estavam ali sendo plenas e permitindo conectarem-se e deixar aflorar a beleza da arte que existe em cada uma".
Milton, Criolo e Amaro, três pessoas negras que conseguiram escapar, quando jovens, das balas assassinas do estado brasileiro e sua máquina de moer carne. João Pedro, Ágatha e milhares de outros não tiveram a mesma sorte. Nos faz imaginar que rico jardim seria o Brasil, se não insistíssemos em matar nossas rosas quando ainda brotos.
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