Onde passa a boiada: aldeias de Dourados resistem a pandemia e agronegócio
"A situação das aldeias, Jaguapirú e Bororó, deu uma piorada, né? Quando respondi a primeira vez sua pergunta só tinha uma ou duas pessoas infectadas pela Covid-19. Fomos pra dez, depois 20, depois 30? Agora acho que tem uns 35. Estava falando com meus amigos, que se a aldeia pegasse o coronavírus, ia ser um caos total. Porque a gente não tem proteção aqui: lavar a mão, sabão, passar o álcool em gel; essas coisas."
Estamos no centro-oeste do Brasil, no estado com a segunda maior população indígena do país, o Mato Grosso do Sul. É também o estado com a quarta maior população de bovinos - mais de 20 milhões. Sim, existem mais bois do que pessoas no Mato Grosso do Sul, onde conflitos agrários, crescimento dos casos de Covid-19 e a pressão do agronegócio nos fazem lembrar da frase do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que sugeriu que era bom aproveitar enquanto a imprensa só se preocupava com a Covid-19 e "passar a boiada", mudando as regras que protegem meio ambiente.
"Aqui perto de casa, na divisa com a aldeia, tem uma fazenda que o pessoal [indígenas] retomou. Lá está tendo muita disputa de terra. Todo dia é ataque, é queimada de casa de nossos irmãos, muita ação desses fazendeiros que estão tocando o terror mesmo. Atirando, passando com trator em cima dos barracos, queimando. Já foi queimada umas duas vezes uma oca lá, uma casa de reza. [Kelvin refere-se a o ataque criminoso acontecido na Terra Indígena Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante.]"
A situação da Reserva Indígena de Dourados, onde ficam as aldeias de Jaguapirú e Bororó, é relatada pelo MC Kelvin Peixoto, 29 anos, membro do primeiro grupo de rap indígena do Brasil, o Brô Mcs, fundado há mais de uma década.
"Brô" vem de brothers ("irmãos", em inglês). É que o quarteto foi criado por dois pares de irmãos Guarani e Kaiowás: Kelvin e Charlis Peixoto, de um lado, Clemerson Batista e Bruno Veron, do outro. "O Bruno Veron foi quem começou com o grupo, fazendo o rap em guarani. [Por volta de 2008], ele apresentava raps na escola quando os professores pediam um trabalho diferente sobre a Retomada [movimento iniciado por diversos povos indígenas de retomada de suas terras originais] ou a demarcação de terras.". A brincadeira dos amigos transformou-se no Brô MC's, um ano depois. Completam o grupo, hoje, o produtor Higor Lobo e a cantora Dani Muniz.
Assista ao clipe de Eju Orondive
Somos mais de quinze mil/ Espremido na reserva/ Enquanto os fazendeiro ocupa a nossa terra/ Nativo, guerreiro/ Herdeiros do Brasil/ Tekoha, Tekoha/ Homem branco hostil
Brô MC's, Humildade
Terra sem males
Yvy marã e'y é, na mitologia guarani, a "terra sem males"; um lugar sem fome, sem guerra, sem doenças ou necessidade de trabalho. "Um bom lugar", como definiria o rapper Sabotage. "Em busca da terra sem males" é, também, o nome do curta-metragem de Anna Azevedo. Exibido no Festival de Berlim, o filme levou, em sua trilha sonora, a música do Brô MC's, pela primeira vez para a Alemanha. Em 2018, o grupo fez apresentações no país Europeu, representado por Bruno e Clemerson.
Assista a "Em Busca da Terra sem Males"
A terra de Kelvin e cia, no entanto, está distante de Yvy marã e'y. Não há, no Brasil, outra reserva com tantos indígenas em espaço tão pequeno. Com mais de quinze mil Guaranis, Kaiowas e Terenas, em uma área de 3,5 mil hhectares, é a maior reserva urbana do país. "A aldeia tem uma limitação que é a falta de água", conta Kelvin. "Aqui a gente tem nossos poços artesianos que fazem a distribuição da água, mesmo assim, eles não dão conta porque tem muita gente aqui na aldeia. As pessoas que moram nessas localidades [mais distantes dos poços] ficam mais vulneráveis a pegar o vírus. Sem água não tem como se proteger, né?"
Estradas de terra esburacadas, desemprego, violência e necessidade de trabalhar em empregos mal remunerados nas cidades dos brancos são outros dos desafios na vida dos jovens da reserva. "O que está acontecendo com nossos jovens é que eles não têm oportunidade de emprego. Na cidade, as pessoas têm preconceito, poucos indígenas trabalham lá. E, [quando] trabalham, é em lugares que os brancos não querem; muito mal pagos. Alguns estão na faculdade, mas também não é fácil. Porque na universidade, sentem na pele o preconceito e o racismo."
A fala de Kelvin sobre a situação dos jovens nas aldeias de Dourados leva a conversa para uma das maiores tragédias que se abatem sobre os adolescentes da região: "Os suicídios acontecem por pressão psicológica, por não ter algo pra si - como roupa bonita, roupa nova, sapato. Tipo, alimentação, também, né? [Em 2005, seis crianças morreram por desnutrição na reserva, condição que afetava outras 290 crianças indígenas, no local, segundo reportagem da agência EFE]. Ou esse jovem trabalha, mas ganha muito pouco. Aí, a pessoa entra numa depressão e acaba se afogando nas drogas ou na bebida. É nessa parte que as pessoas acabam cometendo muito suicídio."
Não é um relato isolado. A falta de perspectivas apontada por ele tem gerado uma epidemia suicida. A taxa de suicídios entre a juventude indígena é quase três vezes maior que entre os demais brasileiros da mesma idade. Segundo o Ministério da Saúde, acontecem 15,2 suicídios a cada 100 mil habitantes entre jovens indígenas, enquanto a taxa do Brasil é de 5,7 a cada 100 mil. A maioria dos suicídios entre indígenas (44,8%) vitima pessoas entre 10 a 19 anos.
Rap salva
"Nossa mãe falou pra mim que eu tinha que seguir o meu caminho. Ela ficou feliz que a gente estava focando numa coisa boa. Naquela época, muitos jovens se envolviam com droga, cachaça e suicídio", conta Kelvin que, assim como o irmão Charlis, cresceu sem a presença do pai.
No começo dos anos 2000, não havia indígenas no rap e a desnutrição assolava as crianças da Reserva Indígena de Dourados, mas a batida do boom bap e mensagem do hip hop mudaram a vida dos quatro moleques: "Quando eu tinha meus dez, onze anos, via meus primos, que eram mais velhos do que eu, ouvindo Racionais, Facção Central. De longe, né? Porque minha família gostava mais de sertanejo raiz, chamamé, polca?", diz Kelvin. Tanto ele, quanto Bruno Veron, fundador do grupo, passavam os sábados de tarde ouvindo o programa de rádio "Ritmo das Batidas", com amigos, onde descobriam artistas como GOG, Inquérito e Sabotage. "Eu curtia mais Racionais, comecei com 'Nego Drama', aquilo abriu uma porta pra mim, mostrava toda luta do negro. Vendo isso, achei que nós indígenas não éramos muito diferente, né?".
Aos poucos, a banda foi se convencendo de que o Brô não era brincadeira. Foram convidados pelo grupo Fase Terminal, de Higor Lobo (hoje produtor do grupo), para cantar na música "No Yankee", em 2009. Com a música, venceram a etapa estadual do Festival Rap Popular Brasileiro e foram pra final nacional, representando o Mato Grosso do Sul no Rio de Janeiro.
Assista "No Yankee" com Fase Termina e Brô Mcs
Em 2019, o que o Brô Mcs começou, dez anos antes de maneira pioneira, explodiu como um dos movimentos mais instigantes da música brasileira. Ancestralidade e cultura de rua, produziram as letras mais nervosas do rap nacional desde a fase "consciente" do ritmo, entre os anos 90 e 2000.
2019 foi a data do primeiro "Yby Festival", que reuniu nomes como Brisa Flow e Kaê Guajajara. O "futurismo indígena" (inspirado no afrofuturismo) vinha para fortalecer e amplificar as raízes indígenas por meio da tecnologia e cultura pop. "Fico feliz que o nosso grupo tenha sido um espelho pra essas pessoas falando sobre suas comunidades e de todos problemas que estão acontecendo com os povos deles", diz Kelvin sobre a nova geração de rappers indígenas, da qual destaca Oz Guarani e Kurumi MC.
E futuro do Brô? "A gente tinha a possibilidade de terminar nosso segundo disco, mas com essa pandemia tivemos que dar uma freada. Nosso plano era viajar pra Europa pra mostrar esse trabalho. Mas por conta disso gravamos novos videoclipes". O grupo lançou há duas semanas o clipe de 'Nhe`ê Mbaratê'.
Kelvin só desanima quando pergunto sobre o governo Bolsonaro. "Bolsonaro está propagando o ódio e a discriminação em relação a nós, indígenas. Não só indígenas, mas os negros e os LGBT. O resultado disso, a gente vê com a situação da nossa Amazônia, as pessoas invadindo a terra dos nossos irmãos. A violência dos fazendeiros piorou muito."
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