"Quando me descobri indígena", conheça a escritora Julie Dorrico
Um belo dia, depois de passar 26 anos sem conhecer as cores de seu passado, Julie Dorrico descobriu que era neta de Macunaíma.
No Brasil - você sabe, honesto leitor, meu igual, meu irmão - quem conhece sua árvore genealógica, suas origens e suas raízes é privilegiado. O IBGE conta 55,8% da população como negra (pretos + pardos), ou seja pessoas que tiveram seus ancestrais sequestrados de suas terras no continente africano e seus nomes e nações apagados do mapa. Há também 0,4% de indígenas por aqui, muitos deles alheios às suas raízes.
Mas, segundo Julie Dorrico, 29, que é doutoranda em Letras, escritora e pesquisadora de literatura indígena, esse número é maior: "O movimento negro tem que reconhecer que essa contagem [de pardos como se fossem todos negros] acaba sendo etnocida com a população indígena. Eu sou classificada como parda, mas a minha amiga que é pataxó, a minha amiga que é guarani, minha amiga que é kariri-xocó, elas também têm isso na certidão, carregam essa marca do pardo, mas são indígenas".
Memórias do quintal
"No chão da minha memória/ corre a menina com as árvores. /As gentes são tudo aquilo que conversam com o seu coração.", Julie Dorrico, "Eu sou macuxi e outras histórias"
Julie Dorico nasceu em Guajará-Mirim, oeste de Rondônia, cidade de 41 mil habitantes. Mas Guajará-Mirim foi apenas o palco escolhido por seus pais internacionais (a mãe guianense, nascida na fronteira com Roraima, e o pai peruano) para que ela estreasse na vida. Havia, em Guajará-Mirim, o hospital mais próximo da vila onde o pai, "o homem do ouro", surgia de vez em quando com uma pepita nas mãos e onde a mãe cuidava de alfabetizá-la, já aos quatro anos de idade.
Julie passou a infância no distrito do Abunã entre pés de lima, feixes de cana-de-açúcar, pés de coco e duas mangueiras frondosas. As mangas ainda cheiram em sua memória. Aos nove anos mudou para a casa da bisavó, em Bonfim (Roraima), na fronteira com Lethem (Guiana). Lá sentiu falta das árvores-gente que a abraçavam com seus cascos e frutos.
A bisa, que viveu mais de cem anos, cultivava mandioca, falava uma língua diferente e pedia para que sua dama de companhia traduzisse para o português seus contos ancestrais. Familiar, aquele cantar diferente, emitido pelos lábios da bisa, já havia pousado nos ouvidos de Julie antes, quando ouvia a mãe conversando com suas tias na primeira infância.
Alfabetizada cedo, Julie Dorrico amou os livros. Íntima das letras, a escola tratou de lhe apresentar os clássicos brasileiros. Chorou com "O Guarani", leu "Memórias de um sargento de milícias" e interessou-se por desvendar Borges, Goethe e Tolstói na Universidade Federal de Rondônia, onde também fez seu mestrado. Lá, a literatura brasileira era relegada a segundo plano e literatura indígena não havia nenhuma.
Os olhos de Julie, que sempre se considerou parda ou cabocla e sofria bullying na escola por carregar os traços ancestrais tatuados na pele, enxergavam uma cidade de Porto Velho descolada de sua ancestralidade. Uma Porto Velho, criada na margem leste do Rio Madeira pela empresa americana Madeira Mamoré Railway Company, que tinha vergonha de ser amazônica e indígena, valorizando, em contraponto, o shopping center, o consumo e as festas de sertanejo. Triste sina de nossas cidades do interior, das florestas e dos sertões que parecem envergonhar-se de suas raízes, buscando no consumo e no exemplo "Miami-São Paulo" o direito de serem enxergadas.
Casada com um acadêmico gaúcho e interessada em estudar o fundamental "A queda do céu", livro do xamã yanomam Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo Bruce Albert, Julie foi aprovada em primeiro lugar no doutorado da PUC-RS.
Distante de casa a gente se enxerga melhor
De Porto Velho a Porto Alegre, viaja-se 3.916 quilômetros - o equivalente a dois dias e uma hora direto. No sul, longe da Amazônia e dos parentes, Julie teve a oportunidade de ouvir dois mestres da literatura indígena contemporânea Daniel Munduruku e Kaka Werá. As palavras dos dois a atravessaram de uma forma em que 26 anos de existência num limbo identitário ganharam sentido. "Liguei para minha mãe e perguntei: 'Mãe, a gente tem algum parente indígena na família?' E ela foi bem direta: 'Sim, tua bisavó é Macuxi'." Aquele telefonema mudou a vida de Julie. "Saí do casulo, virei borboleta". Aos 26 anos, ela pôde entender sua pele, seus cabelos e seus olhos para além da classificação parda do IBGE ou as piadas de colegas de escola.
Julie era Macuxi, neta de Macunaíma, o herói indígena que Mário de Andrade transformou no malandro símbolo de integração nacional e que o escritor e artista macuxi Jaider Esbell tem lutado para recuperar:
"Segundo o Jaider, o próprio deus Macunaíma se permitiu ficar na capa [do] livro do Mário de Andrade, viajar o mundo, só esperando que algum neto seu o resgatasse. O Jaider é pioneiro nessa crítica [à apropriação da divindade Macuxi por Mário de Andrade], ele tem uma performance em que foi num sebo em São Paulo e falou 'eu vim buscar meu vô.' Aí o cara do sebo pensa 'Quê? Esse cara é doido?' (risos) Aí, ele compra uns 40 livros [do Macunaíma] e leva para a aldeia [macuxi]. Como se, simbolicamente, ele levasse seu avô Macunaíma de volta para o seu povo.".
Descobrir-se macuxi, etnia que habita a Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi uma metamorfose na vida da acadêmica Dorrico. Mas também terra preta para que a teoria europeia de literatura e os saberes tradicionais do povos nativos entrassem em fricção inflamando o fogo criativo que transformou Julie em uma das mentes mais efervescentes de sua geração. "Quando você vê uma menina ou um menino que se declara indígena é um caminho só de ida. Não tem volta", diz Julie.
Didática e de fala clara para explicar temas complexos, Dorrico foi uma das organizadoras de duas publicações importantes sobre literatura indígena contemporânea ("Literatura indi?gena brasileira contempora?nea: criação, crítica e recepção", Ed. Fi, 2018, e "Literatura indi?gena brasileira contempora?nea: autoria, autonomia, ativismo", Ed. Fi, 2020) onde faz, entre outras coisas, uma historiografia da literatura indígena e defende a importância da autoria nesse segmento. "É um tentativa de reaver a autoridade dessas narrativas que foram tomadas ou como de gente não-indígena ou como folclore".
Lírica e enfática, em 2019, Julie também lançou o poético "Eu sou Macuxi e outras histórias", pela editora mineira Caos & Letras. O belo livro - ambientado quase todo na Bonfim da bisa, mas também com trechos de Rondônia - seria classificado "contos" no cânone ocidental, mas não se apega à escravidão da forma para transformar a biografia de Julie e seus parentes em narrativa mítica e até para "fazer com o deus cristão o que Mário de Andrade fez com o deus Macuxi", transformando-o em um caçula birrento dos deuses ameríndios, pai do povo mercadoria. Nessas passagens é notável uma influência da narração oral-poética-xamânica de Davi Kopenawa nos contos de Julie, mas dialogando, de forma crítica, com o modernismo brasileiro.
É bonito, também, o texto "A Castanheira", diagramado em forma de árvore, em que a protagonista (ainda lagarta-ocidental não metamorfoseada em borboleta-indígena) pergunta por uma direção e recebe como resposta um "fica ali perto da castanheira", mas não consegue identificar a árvore. É sintomático que isso se passe em Porto Velho, uma cidade pouco arborizada, em plena Amazônia, onde os brasileiros desaprendem a enxergar as "gentes-floresta".
Transmídia, Dorrico é, também, ativa nas redes sociais. Toca os perfis "Leia mulheres indígenas" e "Leia autores indígenas", no Instagram, e tem usado os tempos de isolamento social, devido à pandemia de covid-19, para fazer lives-entrevistas com escritores e artistas indígenas de diversas etnias como Eliane Potiguara, Daniel Munduruku e Kunumi MC. Contadora de histórias nata, Julie é generosa em dar crédito a seus parentes que a influenciaram com pensamentos ou lhe presentearam com boas histórias. Foi o caso de uma live para o canal Carnavalhame com a poeta amazonense Márcia Kambeba, autora do livro "Ay Kakyri Tama (eu moro na cidade)".
"Kambeba estava gravando um videoclipe, num rio que estava bem seco, então não podia ter botos. E a Márcia disse que tinha uma relação muito especial com os botos, que para os Kambebas também representam os "encantados*". Então, ela disse que estava na ponta da canoa e, quando ela começou a cantar, um boto pulou por cima da canoa. E tinha gente lá, tinha quatro câmeras, drone, mais ou menos umas dez pessoas, e eles ficaram chocados quando ela cantou e o boto passou por cima. E o homem que estava remando a canoa falou 'É, minha filha, ele veio por causa do seu canto'. Márcia Kambeba pediu licença pro boto, que se ele quisesse ele poderia aparecer de novo. E, quando ela cantou, ele apareceu de novo. Os câmeras falaram 'eu não acredito que a gente não conseguiu filmar esse momento' E ela falou 'não é que vocês não conseguiram, é que vocês ficaram paralisados. O boto não é pra ser filmado, o boto é um encantado'".
* Encantados, nas tradições ameríndias, são que têm algum tipo de poder mágico, e podem ser pedras, animais, plantas ou indígenas que se metamorfoseiam nas histórias míticas.
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A indiazinha chapeuzinho verde
Djatchy Djaterê
2) Leia mulheres indígenas: @leiamulheresindigenas
3) Leia autores indígenas: @leiaautoresindigenas
4) Perfil de Julie com lives com outros artistas indígenas: @dorricojulie
5) "Eu sou macuxi e outras histórias" (Ed. Caos & Letras)
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