O racismo não cortou a língua de Itamar Vieira Jr; escutemos sua(s) voz(es)
"Ouviu os passos lentos de sua mãe, talvez chamando o pai, Itamar ou sua avó. Seriam batatas queimando? Havia o cheiro de algo queimando, mas também o cheiro de papel, da tinta que transformava o papel em livro, em código, em vida. Quando a mãe de Itamar Vieira Junior abriu a porta de seu guarda-roupa, num bairro pobre e negro de Salvador, a cidade mais negra do Brasil, ele viu o olhar assombrado de sua progenitora. Ouviu a mãe perguntar o que aquela papelada, aqueles cadernos, estavam fazendo ali. 'Você deveria estar perdendo tempo estudando e não escrevendo essas bobagens!'.
Depois disso, o menino Itamar - descendente de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de indígenas Tupinambás, da região de Coqueiros do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano - passou a esconder os livros infantis que rabiscava desde os cinco anos de idade. "Quando eu aprendi a ler, automaticamente passei a escrever também."
A cena acima é a fusão da história do escritor baiano Itamar Vieira Junior, 40, com o primeiro capítulo de seu aclamado romance "Torto Arado" (Todavia, 2019). Teria este "flagrante" da mãe de Itamar plantado a semente que faria florescer a cena inicial de seu épico sobre as relações do homem com a terra? Residiria aí o germe da história protagonizada pelas irmãs Belonisia e Bibiana, que inicia sua narrativa já num clímax quando as duas crianças encontram a velha faca da avó Donana e uma das duas acaba cortando a própria língua? Teria o pequeno Itamar, mais uma criança negra e pobre incentivada a calar sua voz e não contar a própria história, sentido que sua língua fora decepada no momento em que a mãe, ecoando a sociedade racista e classista do Brasil, lhe repreendeu por brincar-se escritor?
Fio de corte
No Brasil quem escreve é branco. Praticamente todos os romancistas brasileiro (97,5%), publicados por grandes editoras, entre 2005 e 2014, o eram. Isso em um país onde os brancos são apenas 47,73% da população. Mais de 70% desses escritores também eram homens, sendo que a maior parte dos brasileiros são, na verdade, brasileiras; 51,6% para ser exato.
Os dados vêm de uma pesquisa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenado pela professora Regina Dalcastagnè. Outro dado interessante, mas não surpreendente, do estudo, é que homens brancos ricos do eixo Rio-São Paulo escrevem basicamente sobre homens brancos ricos do eixo Rio-São Paulo. Sim, quase 78% dos personagens dos romances são brancos, sendo a maior parte composta por homens. "Narciso acha feio o que não é espelho", cantaria outro baiano com raízes no Recôncavo.
Não é o caso da obra de Itamar Vieira Junior, no entanto. Leitor dos antropólogos Viveiros de Castro e Tim Ingold, Itamar trabalha no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) há quase 15 anos. Foi nesse trabalho que estabeleceu convivência e escuta com quilombolas, sem-terra e indígenas do interior do país. Parte desse contato incorporou-se em sua tese de doutorado "Trabalhar é tá na luta: vida, morada e movimento entre o povo Iuna" (2017), na área de Estudos Étnicos e Africanos.
Como um cavalo de umbanda ou um xamã yanomami, Itamar incorpora o outro, abrindo-se à alteridade, e transmutando-se em rio onde correm as águas de diferentes vozes. Através de sua escrita clara e imagética, Vieira Jr. abre portais a seus leitores para lugares como a mente das duas irmãs negras quilombolas protagonistas de "Torto Arado", livro dividido em três partes, cada uma narrada por uma voz diferente. (Além de Belonisia e Bibiana, a entidade do jarê Santa Rita Pescador).
Já no seu segundo livro de contos, o finalista do Prêmio Jabuti "A Oração do Carrasco" (Mondrongo, 2017), Itamar fugia das armadilhas da autoficção narcisista. Lá, "O espírito aboni das coisas" é protagonizado por Tokowisa, um indígena do povo Jarawara; "Alma" traz para o palco a voz de uma escrava em fuga, avó espiritual de Belonisia e Bibiana, e "Manto de Apresentação", inspirado na vida do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, tem como fio narrativo a voz da "loucura" escutada pelo genial artista que passou grande parte de sua vida preso em um hospício.
"Se eu não tivesse estudado sociologia, não tivesse estudado antropologia, talvez eu não fosse capaz de escrever livros em que me colocasse no lugar do outro. Para uma criança perdida no meio de uma biblioteca, o que se sobressaiu foram os valores ocidentais dos homens brancos na minha educação. Então, estar nesse exercício é reencontrar aquilo que se perdeu na minha ancestralidade."
Torto Arado
O pai de Itamar Vieira Junior estava internado com insuficiência renal, quando seu filho se tornou o escritor brasileiro mais comentado do ano de 2018 ao embolsar 100 mil euros (o equivalente, hoje, a mais de meio milhão de reais) no prestigiado Prêmio LeYa por seu romance, até então inédito, "Torto Arado". A premiação da editora portuguesa é a mais bem paga da lusofonia. Nela, as obras devem ser submetidas com pseudônimo para que os jurados não sejam influenciados pelo pedigree do autor. "Será que foi uma mulher ou um homem que escreveu isto?" perguntava-se a poeta angolana Ana Paula Tavares, jurada do prêmio, que "até o fim" não conseguiu descobrir o gênero do "cavalo" Itamar.
A ideia básica de "Torto Arado" (nome retirado de "Marília de Dirceu", poema do inconfidente Tomás António Gonzaga), veio à mente do adolescente Vieira Junior quando este tinha 16 anos e a escola lhe apresentara Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e José Lins do Rego, leituras que seus juvenis colegas desprezavam, mas pelas quais ele se apaixonou.
Acompanhado por muita solidão no ambiente escolar, onde sentia-se deslocado, o tímido Itamar refugiava-se do bullying passando horas na biblioteca da escola. Quando terminou de ler tudo que lá havia de ficção (além dos regionalistas brasileiros, os clássicos infanto-juvenis da coleção Vaga-Lume), passou aos livros de geografia, o que lhe rendeu a ideia de ser geógrafo.
"Eu fui levado, pela própria realidade dos meus pais, à ideia de que eu precisava ser pragmático, que ninguém vivia de escrita, que a literatura não era um trabalho.". Para garantir uma renda melhor que a de professor, passou a prestar concursos públicos e acabou entrando no INCRA, trabalho que lhe permitiu muita escuta. E essa escuta de um Brasil pouco visto em nosso livros, programas de televisão e filmes foi fonte de inspiração para diversos de seus personagens diversos.
No convívio com as comunidades quilombolas do interior do sertão baiano, Itamar encontrou a maturidade que lhe faltara aos 16 anos para concluir seu romance. Apesar de o autor não fornecer ao leitor muitas datas, localizações exatas ou contexto, o que torna sua prosa mais "universal", com um quê de fábula, "Torto Arado" é uma saga histórica que gira em torno dos conflitos por terra em uma comunidade quilombola, localizada na Chapada Diamantina (BA).
Certo, estava pronto o romance que, assim como os moradores dos interiores do Brasil, misturava fatos da realidade "física" com elementos mágicos e espirituais, mas Itamar precisava alforriar aquelas vozes cansadas de mudez.
A inscrição no Prêmio Leya veio porque o autor, que estreara com a antologia de contos "Dias" ( 2012, Caramurê), vivia muito distante das baladas literárias do eixo Rio-São Paulo. A vontade de ser escritor profissional é memória antiga, localizada quando tentou recontar a história de "O caso da borboleta Atíria", de Lúcia Machado de Almeida, em algum momento da infância. No entanto, sem dinheiro no bolso ou amigos importantes, restava a Itamar a esperança de vencer algum prêmio para ver seu romance publicado.
Naquela manhã de quarta-feira, no mês de outubro, Itamar seguia para visitar o pai no hospital, quando recebeu a ligação de um homem de voz grave e sotaque lusitano. Era o escritor português Manuel Alegre, vencedor do Prêmio Camões e presidente do júri do Prêmio LeYa. Por mais que soe piegas escrever isso, a vida de Itamar mudou completamente a partir daquele dia, transformando-o, com o perdão de Carla Perez, no verdadeiro "Cinderelo baiano".
Com o dinheiro do Prêmio, Itamar pode financiar um apartamento próprio no bairro de Itapuã, a cerca de cinquenta metros da casa onde viveu o poeta Vinicius de Moraes. Apartamento co-habitado, com Itamar, por algumas plantas, quatro gatos e dois cachorros com quem ele conversa e se entende, enquanto responde minhas perguntas. "Minha cachorra não late, ela fala".
"Torto Arado" saiu com 8.000 exemplares, em Portugal, tornou-se unanimidade no país de Saramago e transformou seu autor em celebridade local, sempre concedendo entrevistas de forte tom político e antirracista. O prêmio também lhe levou ao contrato com a editora brasileira Todavia que lançou, por aqui, 3 mil exemplares de seu romance.
O pai de Itamar, a quem Torto Arado é dedicado, alegrou-se com a conquista do filho, que fugiu da combo "futebol-música" ao qual geralmente são limitados os homens negros no Brasil, para traçar sua ascensão meteórica. Faleceu, no entanto, 15 dias depois de ver o herdeiro abocanhar o Prêmio LeYa.
Rio de Sangue
"Ano passado tivemos a tragédia [do rompimento da barragem] de Brumadinho que foi uma coisa chocante, né? Foram 300 vítimas levadas de uma só vez. E, agora, [com as mortes da covid-19] é como se tivessem rompido mais de cem barragens ao mesmo tempo", reflete Itamar, que confessa que a tristeza provocada pelas mais de 38 mil vítimas doença no Brasil influenciam em sua criação literária.
O autor segue, no entanto, com as pesquisas para seu próximo romance que irá compor, com "Torto Arado", uma sequência de obras que vão tratar "da relação do homem com a terra no Brasil". Questão fundamental em um país que começou sua triste sina quando foi invadido e dividido em latifúndios, nas mãos de poucas famílias ricas, pelos portugueses há 520 anos. Minha avó costumava dizer "Mamãe foi pega no dente de cachorro", conta o escritor sobre a bisavó indígena.
Sua visão sobre a terra, que lhe inspira o conjunto de obras, foi aprendida com os trabalhadores rurais com quem conviveu no trabalho, com antropólogos que estudou e com o cinema que influencia sua narrativa imagética. "O cinema sempre teve um impacto forte nas coisas que eu escrevo."
Fã do baiano Glauber Rocha, mas também de Visconti, Bergman e Kurosawa ele reflete sobre o filme "Dersu Uzala", do diretor japonês, comparando-o com a obra do antropólogo Tim Ingold: "Recentemente eu reassisti 'Dersu Uzala' e senti uma conexão tão forte com o que eu escrevo, com o meu trabalho, com a forma como vejo o mundo. Porque o Dersu é um indígena que vive na Sibéria e que estabelece uma relação com aquele homem branco, mas é uma relação que extrapola a exploração. Aquele homem fica realmente impactado com a vida do Dersu. O cinema é muito a paisagem e não é a paisagem apenas como cenário, como palco, a paisagem é um personagem, ela está interagindo o tempo todo conosco. Ela é dotada de vontade própria. O Tim Ingold tem um livro chamado 'Estar vivo' e ele chama o espaço, a terra de 'mundo-tempo'. A gente habita o 'mundo-tempo' e por mais que a gente interfira nele, por mais que a gente esteja vivendo esse período que chamamos de Antropoceno, o Tim fala que achamos que podemos dominar tudo, mas não podemos. De repente vem um aluvião, um terremoto, vem um chuva e destrói tudo. Destrói sua casa, sua plantação, sua cidade. A natureza é imperiosa, é furiosa, está agindo o tempo todo sobre nós. E essa forma não foi o Tim que inventou, ele só faz reproduzir o que ele viu naquelas sociedades indígenas. A Belonisia [protagonista de Torto Arado que perde a língua e não pode falar] é assim, quando ela diz que a natureza é a voz dela. Ela não pode se comunicar, mas ela entende aquele palmo de chão como ninguém. Ela vive nesse 'mundo-tempo'. Ela está prenhe de tudo isso, ela está prenhe de natureza, ela é a força da natureza, está junto com tudo isso com os animais com as plantas."
A voz de Itamar não é voz, são vozes. Ouçamo-nas.
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