Topo

Fred Di Giacomo

"Milicianos entraram em Palmares e continuam entrando em Paraisópolis"

A escritora pernambucana Micheliny Verunschk - Arquivo pessoal
A escritora pernambucana Micheliny Verunschk Imagem: Arquivo pessoal

02/07/2020 04h00

"Muitas vezes o papai sumia de casa e passava muito tempo fora. A gente não sabia o que estava acontecendo. Quando papai morreu, em 2010, recebemos a ficha de trabalho dele. Entregaram para minha mãe. Aí, descobrimos que as vezes que o papai estava sumido não era à trabalho. Ele estava preso no quartel. Ele foi preso muitas vezes".

Intransponível, a violência atravessa o artista brasileiro que não nasce cego pelo extremo privilégio. Micheliny Verunschk está atenta e forte. Olhos de onça, fala reflexiva, ela escreve o Brasil que sangra. "[O brasileiro] não é um povo pacífico, nunca foi. Isso é uma balela que inventaram. Houve e há muita resistência. A história do Brasil está cheia de Cabanagem, de Cemiterada, tudo que é movimento de resistência".

A poeta de Arcoverde (PE), filha de uma professora de geografia e de um policial militar que foi, também, delegado, apenas nasceu em Recife. Quando delegado no sertão pernambucano, seu pai chegou a manter em casa um adolescente que havia assassinado o progenitor com golpes de foice para defender a mãe vítima de espancamento. A tragédia de tons gregos foi remixada na "Trilogia Infernal", de Verunschk, lançada pela Editora Patuá e composta dos romances "Aqui, no coração do inferno" (2016), "O peso do coração de um homem" (2017) e "O amor, esse obstáculo" (2018). Na trilogia sangrenta, que flerta com Kill Bill e western spaghetti, o pai da menina do sertão é um delegado e torturador da ditadura militar que prende em casa um jovem canibal. O trio de romances, polifônico como quase toda obra de Micheliny, é narrada ora pelo jovem canibal Cristóvão, ora pela filha do torturador Laura e cria imagens fortes sobre os anos posteriores ao golpe de 64, numa época em que a Comissão de Verdade oferecia alguma esperança de justiça.

Micheliny bebê com os pais - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Micheliny bebê com os pais
Imagem: Arquivo Pessoal

Mas não se engane, Micheliny foge da autoficção e se encanta com a fabulação. Seu pai nunca foi torturador, pelo contrário: quando muitos militares ainda não podiam votar, situação que só mudou com a Constituição de 1988, ele era defensor da justiça social. "Eu, meu pai e minha mãe, a gente ia escondido, em Tupanatinga [cidade no polígono das secas], para a zona rural fazer campanha pra Miguel Arraes. A gente saía de madrugada pra chegar nos sítios, mas denunciaram papai e ele foi preso por causa disso."

Lula Calixto, maestro do sertão

Contar a história da escritora Micheliny Verunschk é também contar a história de uma lenda pernambucana: o mestre Lula Calixto, responsável por transformar Arcoverde na capital mundial do samba de coco, com uma das maiores Festas de São João do Brasil e lar tanto da poesia de Verunschk, quanto da música do Cordel do Fogo Encantado.

"Uma amiga, em Arcoverde, chamou minha atenção para um homem que vendia artesanato e cocada nas ruas da cidade. O homem era Lula Calixto. E isso abriu o mundo, sabe? Lula, um homem negro, começou a contar pra gente a história dos bairros populares de Arcoverde, ligados à tradição de samba de coco."

Mestre Lula Calixto e Micheliny Verunschk - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mestre Lula Calixto e Micheliny Verunschk
Imagem: Arquivo pessoal

Estrela cadente, Lula Calixto morreu aos 57 anos, em 1999. Tinha doença de chagas, mal que assola os que, como ele, habitaram casas de taipa onde se abriga o besouro barbeiro. A morada de Lula era, no meio do mato, em Rio da Barra, no município de Sertânia. Segundo seu irmão, Assis Calixto, foi Lula quem criou o tamanco de madeira com tira de couro que os dançarinos de coco usam para fazer o sapateado conhecido como trupé. O mesmo trupé que inspirou a música homônima do genial pianista Amaro Freitas. Amaro estava em uma Festa de São João, em Arcoverde, quando se impressionou com ritmo e performance do samba de coco. Hoje, o São João da cidade atrai milhares de turistas e movimenta sua economia.

"Lula Calixto não chegou a ver isso. Várias coisas que acontecem, hoje, são coisas que ele estava ali, nos anos 90, [construindo], batendo de porta em porta. Ao mesmo tempo que ele ia pra minha casa, eu uma universitária branca, ensinar a dançar o coco, ele ia no acampamento do MST, ia na [aldeia] Xucurus dizer que isso é tradição dos negros, mas é dos indígenas também", conta Micheliny.

Nos anos 90, o samba de coco, que havia sido muito importante em Arcoverde, entre 1920 e 1940, estava excluído da vida oficial da cidade "Em 1996 ou 1998, eles [o grupo de coco de Lula Calixto] foram convidados para o São João da cidade, tinham investido em roupa e tal. Quando chegaram lá, disseram que eles teriam o cachê, mas não precisavam se apresentar. É muito louco que só com o interesse de dois brancos, a cidade passe a valorizar uma coisa que é sua." Além de Micheliny, o outro branco, no caso, era o poeta, ator e músico Lira Filho, conhecido como Lirinha, do grupo Cordel do Fogo Encantado.

"Lira estava fazendo os primeiros espetáculos dele, que eram ligados ao colégio onde ele estudou e onde eu tinha estudado também. E meus pais viram sua apresentação e chegaram em casa encantados com seu trabalho. Aí, a gente começou a se aproximar e ficamos amigos. Começamos a pesquisar juntos essas tradições de Arcoverde, como samba de coco, reisado, banda de pífanos."

"No fim das contas, esse convívio foi muito intenso com Lula Calixto: um mestre. Um mestre em um sentido muito amplo. Uma pessoa humilde, mas de grande sabedoria. Não só sabedoria de vida, mas sabedoria prática. Ele tocava na banda municipal também; era múltiplo. Era muito conhecido na cidade, mas era tido como louco. Lula precisava de interlocução. E as pessoas não davam."

Cinderela do Sertão

Micheliny Verunschk começou a escrever romances com cerca de 8 anos, como testemunha um caderno que seu pai encontrou guardado, antes de morrer. Depois passou para os poemas que lhe abriram a primeira oportunidade de ver sua obra publicada no papel. Eram os anos 90, Chico Science e Nação Zumbi lançavam seu segundo disco "Afrociberdelia", puxado pelo hit "Maracatu Atômico", enquanto Micheliny escrevia poemas no sertão sem saber se aquilo que estava fazendo era bom. Seu pai havia feito uma assinatura do Jornal do Commercio (JC) porque lá havia uma coluna, do jornalista Mario Helio, sobre literatura contemporânea que interessava à Verunschk.

Um belo dia, depois de ler "O sofrimento do jovem Werther", de Goethe, Verunschk decidiu enviar meia dúzia de poemas para Hélio para saber se tinham algum valor, mas o jornalista não respondeu. Passou uma semana, passou a segunda?A edição de domingo do JC chegava no sábado de noite e era ritual do pai de Micheliny apanhar o jornal na garagem. Naquele noite, no entanto, quem apanhou o JC foi a escritora, que saiu gritando eufórica pela casa. Seus poemas tinham sido publicados na coluna que adorava. Foi a maior emoção "literária" que Micheliny sentiu na vida, mesmo comparando com os prêmios para os quais viria a ser indicada depois. "Me senti uma cinderela do sertão", diz. Dali, Micheliny passou a publicar poemas em sites e revistas, como a Cult, e foi selecionada para uma antologia de poetas organizada por Frederico Barbosa.

Veio para São Paulo, pela primeira vez, já para lançar seu primeiro livro de poemas "Geografia íntima do deserto" (Lady, 2003), influenciada notadamente por João Cabral de Melo Neto, mas também por Orides Fontela, Drummond e o romeno Marin Sorescu. Além da noite de autógrafos na metrópole que Micheliny adorou, a poeta ganhou uma indicação importante; foi a única mulher entre os 10 finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2004. Nesse mesmo ano, passou a rascunhar um conto que viria a ser seu primeiro romance, "nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida", que só foi lançado 10 anos depois pela Editora Patuá. É que no meio do caminho havia a maternidade, havia a maternidade no meio do caminho. Mas não só: contemporâneos aos nascimentos dos dois filhos, aconteciam a realização de um mestrado e o suicídio de um amigo - que provocaria reflexões incorporadas ao romance.

Também havia a busca pela voz de romancista que parecia nunca satisfazer a poeta. Micheliny acabou encontrando-a cinematográfica, com rica criação imagética e um talento para a simultaneidade, talvez influência de Osman Lins que gabaritou o tema em seu clássico "Avalovara". Assim como 2004 foi um ano de erupção inicial para Micheliny, o terremoto que seu deu em 2015 com a vitória do Prêmio São Paulo de Literatura, sendo uma mulher do sertão nordestino publicando por uma editora independente, consolidou Verunschk como nome fundamental da literatura brasileira contemporânea, que fugia aos lugares comuns da autoficção e explorava o perspectivismo.

Essa consolidação levou a assinatura de um contrato com a Companhia das Letras, a mais importante editora do país, para o livro "O som do rugido da onça" que sai ainda em 2020. O romance histórico fala sobre uma tragédia pouco conhecida do colonialismo científico europeu. Spix e Martius, dois naturalistas alemães, fizeram parte de uma expedição científica que chegou ao Rio de Janeiro, em 1817, e havia sido organizada em sintonia com o casamento entre a princesa austríaca Leopoldina e Dom Pedro I. Depois de rodarem a Amazônia por três anos, no lombo de mulas, Spix e Martius levaram de volta para Munique algumas plantas, alguns animais e cinco crianças indígenas sequestradas que não viveram muito para receber a educação europeia e civilizadora que os alemães pretendiam lhes dar.

A escritora Micheliny Verunschk - Ricardo Bolognini - Ricardo Bolognini
A escritora Micheliny Verunschk
Imagem: Ricardo Bolognini

A inconformidade da alma selvagem de Onça Verunschk

Não se engane, atento leito, Verunschk não é um sobrenome russo. É o segundo nome de Micheliny Verunschk Pinto Machado, inspirado em um livro que seus pais haviam lido e gostado. No entanto, nas redes sociais, ela adotou performaticamente o nome de Onça Verunschk. "O 'eu animal' sempre me interessou, como história de vida, mas só vim compreender melhor isso quando comecei a ler o [antropólogo brasileiro] Viveiros de Castro. Porque sempre teve muita coisa do 'bicho que fala' na minha família, 'do tempo em que os bichos falavam', uma coisa que vinha dos meus avós, dois ótimos contadores de histórias".

Viveiros de Castro é famoso por teorizar o "perspectivismo ameríndio" que Verunschk incorporou, assim como o animalismo, organicamente em muitos de seus trabalhos. O poema "Seca" de "Geografia Íntima do Deserto", por exemplo, é escrito sob a perspectiva de um boi que enxerga o sol escaldante como "imenso carrapato agarrado no azul" do céu. "Escrever sob a minha perspectiva é muito pobre", diz Micheliny.

A busca pelas peças faltantes no quebra-cabeça da história do Brasil parece ser uma obsessão da escritora. Se, em sua "Trilogia Infernal", a protagonista busca descobrir os crimes do pai durante a ditadura, assim como os estilhaços de sua própria história, Verunschk investiga os cacos de sua genealogia que começam com a "união" de um filho de Domingos Jorge Velho, o miliciano que destruiu o quilombo de Palmares, e uma mulher indígena de um povo chamado Inhaú, que faz parte da nação Cariri, e se juntou ao quilombo de Palmares nas Guerras dos Bárbaros. "Tem uma mística da mata do Cariri na minha família. A mata do Cariri seria a 'Terra sem Males' familiar. Onde as crianças ficam antes de nascer, onde os bichos falavam, onde corria leite e mel?" Verunschk descobriu-se também descendente Fulni-Ô por parte de sua avó materna.

"Ao mesmo tempo que eu me orgulho de ser descendente da nação Cariri, eu me envergonho de ser descendente de Domingos Jorge Velho. E as pessoas dizem: você não tem nada a ver com isso, isso não se transmite geneticamente. Mas a gente vive em uma país onde a reparação histórica nem começou. E a gente tem que pensar em como esses milicianos entraram em Palmares e continuam entrando em Paraisópolis. Todos privilégios que eu tenho vem por conta disso. Mas me envergonho e acho que precisamos fazer uma reparação histórica. Derrubar uma estátua é o mínimo do mínimo do mínimo. Exigir que essas crianças não sejam cotidianamente massacradas? É um país terrível. Lindo, que dá figuras como Lula Calixto, mas terrível."