A insustentável leveza de ser bicha nordestina: Raimundo Neto, vida e obra
O menino criado no sertão do Piauí não segue o script que você já escreveu em sua cabeça para os meninos criados no sertão do Piauí. O menino criado no sertão do Piauí flutua rodopiando na barra de pole dance.
O menino criado no sertão do Piauí é filho, mas rasgou o roteiro que a família delimitou para ele. Filho de quem? Filho de quantas? O filho da pequena Batalha (PI), 26.379 almas, foi parido em Barras (PI), mas criado na cidade de nome bélico. Na Batalha, onde a avó fora professora e se metia pelo interior no lombo de jegue, e o avô, referência local de saúde, tocava uma pequena farmácia. Todo o amor que o menino inventou para si não cabe no colo real que dona Ressu e seu Dico lhe deram até morrer.
"O menino tem mãe, não?" Pergunta o leitor enxerido. E logo vem a memória da mãe solo comendo o pão que o machismo amassou: grávida de um relacionamento com um homem complicado, teve que largar os pequenos empregos administrativos em Teresina (PI) e voltar para o colo de Dico e Ressu. O resto da família a isolou em um quarto por meses, não permitindo que ela usasse os mesmos lençóis que as demais irmãs, a denominando puta ou vagabunda a cada discussão que explodia. Em 1982, ser mãe solteira era ainda crime grave. A Pietá do Piauí depositou em um possível filho homem a redenção de todas violências que sofrera, mulher. E no dia 13 de outubro de 1982 nasceu Raimundo Nonato Lopes Neto, psicólogo e escritor fadado a vencer o Prêmio Paraná de Literatura 2018 e ser finalista do Prêmio Sesc de Literatura do mesmo ano. Além, é claro, de enfrentar a homofobia do mundo rebolando pole dance de salto alto.
"Bicha nordestina"
"Quando nasci o médico brincou e disse 'é uma menina'. Minha mãe desmaiou. Passou mal porque não queria uma filha mulher graças a todas as violências que ela tinha sofrido." Raimundo Neto, autor de "Todo esse amor que inventamos para nós" (Ed. Moinhos, 2019), teve uma infância humilde na "Terra do Bode", apelido da cidade piauiense de Batalha, cujo nome derivaria das guerras entre os indígenas locais, pertencentes à etnia Jê, e os portugueses que invadiram a região muito cedo. Já em 1794, iniciou-se a construção da Paróquia São Gonçalo, inaugurada em 1814, e localizada numa típica praça de matriz de cidade de interior.
Passear pela bucólica pracinha, sob o calor piauiense, não parecia sinônimo de felicidade para Raimundo. "Tenho umas lembranças muito vivas das crianças me xingando na escola, na rua. Cheguei a deixar de sair de casa muitos anos porque, quando eu saía, me xingavam. E lembro da minha mãe ameaçando 'É verdade que estão te xingando de viado, na rua? [Se for] você vai apanhar!'". Para a mãe solteira que sempre sonhara com a redenção que um filho macho pudesse realizar magicamente, os indícios de que o menino fosse gay era reprimidos agressivamente: "fala que nem homem, caminha que nem homem, homem não faz assim".
"Eu gostava de boneca, brincava muito escondido com as das minhas primas, das minhas amigas, mas tinha as brincadeiras mais dos meninos que eu não me encaixava, tipo futebol.". Além das bonecas, que rendiam castradora repressão, Raimundo gostava de desenhar, criar histórias em quadrinho e ler gibis dos X-Men. Sempre foi excelente aluno tanto nos primeiros anos em escola pública, quanto quando mudou para uma escola particular muito barata ("a mensalidade devia ser uns dez reais") na pequena cidade. Aplicado, sonhava em conseguir um bom emprego e tirar a mãe da pobreza.
Na infância e adolescência, em Batalha, abundavam as horas de estudo e rareavam os afetos e descobertas amorosas da puberdade vindoura, o que dava margem para abusos sexuais, tabu pouco comentado entre os homens. "Eu fiquei exposto, durante muitos anos, a violências masculinas na minha infância e adolescência. Todas as experiências que eu tive [nesse período] envolvendo sexo, com esses masculinos, foi na base da violência ou da ameaça, não foram de afeto. Eu era a bicha afeminada, então tem alguma vulnerabilidade aí que essas masculinidades acham que podem… Eu tenho uma fala muito viva de um desses caras que usava desses tipos de ameaças e violências, tipo 'vou contar pra todo mundo se você não fizer isso'. Ele falava: 'isso aí que você está esperando de beijo na boca, de abraço, isso aí não existe. Homem veado é isso aqui'. E, aí, fazia tudo."
No ensino médio, Raimundo mudou-se com a mãe para a capital do Piauí, Teresina, onde ela insistia que o filho estudasse em um bom colégio particular, apesar da situação social conturbada da família. "Mas aí tinha vários problemas porque era uma escola particular e a gente não podia pagar. Foi um momento muito tenso. Entrou todo rolê de dívida, fui barrado na porta da escola várias vezes. Era uma outra margem que vivi nessa escola porque os alunos tinham uma condição muito outra. Às vezes, queriam me levar nos lugares que eles frequentavam, mas eu não tinha um centavo para ir. Além de me chamarem de veado, ainda tinha esse lance de não pagar a mensalidade, muito difícil."
Com exceção do tio-avô Pantim, que era músico autodidata, cadeirante e cego, Raimundo não tinha artistas na família, nem muito acesso a livros. No entanto, oásis-bálsamo, uma amiga da mãe lhe apresentou a "A descoberta do mundo", de Clarice Lispector, que o adubou. Depois, nas horas que passou em bibliotecas estudando para o vestibular, foi garimpando outros tesouros literários como "A Maçã no Escuro", da mesma Clarice, e os livros de Caio Fernando Abreu, como "Ovelhas Negras". Caio e João Gilberto Noll foram suas primeiras referências de literatura LGBTQI+.
Apesar da dedicação caxias, não entrou na universidade direto ("primeiro prestei direito"), mas, na segunda tentativa, foi aprovado no curso de psicologia na Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Nessa época, conseguiu o primeiro emprego formal (depois de alguns bicos dando aulas particulares), e pode, finalmente, comprar um livro pela primeira vez: "Peguei meu primeiro salário, que era de 400 reais [aproximadamente um salário mínimo, na época] , tirei 40 reais para comprar 'A história do amor', de uma escritora chamada Nicole Krauss, no Submarino, e dei os 360 reais restantantes pra minha mãe."
Com algum dinheiro no bolso, e respirando um ambiente menos conservador, Raimundo descobriu a democrática cena LGBTQI+ de Teresina, baseada no "inferninho" Mercearia. São dessa época as amizades mais fortes. Através do chat do UOL que, sem internet em casa, Raimundo acessava de uma LAN house, descobriu as primeiras relações afetivas com outros homens, os primeiros amores; pistas da possível felicidade. E passou a dormir algumas noites fora de casa. "Aí, minha mãe teve um ataque e falou:
'Tu é muito esquisito.'
'Esquisito como, mãe ?'
'Tu parece que é veado'
'Sou.'
Ela se jogou no chão, gritou, os vizinhos vieram bater na porta perguntar se estava tudo bem. Minha mãe teve um colapso. Eu recordo de ficar dias sem ir na faculdade porque ela dizia que ia se matar, que não queria um filho assim. Eu tive que contar umas três vezes para minha mãe que era gay."
Num desses dias, em Teresina, a mãe encontrou o pai-fantasma vagando pelas ruas "mendigo, todo sujo, andando numa bicicleta". Dias depois, o patriarca-ausência, que Raimundo nunca vira, apareceu no apartamento dos dois, abraçou o filho e começou a falar de sua vida atual sem explicações sobre o passado. Em sua primeira viagem para São Paulo, para apresentar um trabalho, Raimundo conheceria os outros filhos do casamento "oficial" do pai e com eles a história de esquizofrenia paranoide do homem que lhe legara metade dos genes e sumira.
Escrever como forma de sair do armário
"Na mesa do Prêmio Paraná de Literatura a primeira coisa que falei foi 'eu queria começar dizendo que sou bicha e que pra mim escrever esse livro foi também sair do armário'."
Quando conheceu São Paulo, Raimundo percebeu que aquela imensidão de concreto e anonimato era ideal para poder viver sua identidade e fugir do script normativo redigido por sua família. Passou, então, num concurso para psicólogo do Tribunal de Justiça do Estado, onde trabalha com processos de adoção; um tema central também em sua obra literária.
Escrevendo em diários e blogs há anos, Neto levou seus rascunhos para uma oficina do escritor Marcelo Maluf, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura com o ótimo "A imensidão íntima dos carneiros" (Ed. Reformatório, 2015) e figura importante na história dos autores brasileiros contemporâneos como Raimundo e Itamar Vieira Junior. Maluf ajudou Raimundo a formatar dois projetos: um romance ainda inédito, que foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2018, e a antologia de contos "Todo esse amor que inventamos para nós" vencedora do Prêmio Paraná de Literatura 2018. O sucesso nas premiações o levou a ser convidado para a Printemps Littéraire Brésilien 2019, onde fez uma fala impactante na universidade de Sorbonne, em Paris, no mesmo dia que o escritor e ex-deputado Jean Wyllys. Raimundo também participou de diversas antologias recentes como "A resistência dos Vaga-Lumes" (Nós, 2019), que inclui 61 nomes LGBTQ+ da literatura contemporânea brasileira.
"Todo esse amor que inventamos para nós" é uma impressionante estreia literária que soa como o escritor Caio Fernando Abreu, da fase "Sargento Garcia", escrevendo com agressividade do rap hardcore de "Eu não pedi pra nascer" do Facção Central. Ora realistas ao extremo, ora surrealistas ("Foi então que os cus começaram a desabrochar pela casa. Começaram como carocinhos inúteis e afloravam malcheirosos e encarnados, contornados em seus alinhavados de pregas e inchaços."), seus contos são, em geral, narrados em primeira pessoa por uma miríade de vozes LGBTQI+.
"Todo esse amor que inventamos para nós" é dos primeiros livros premiados do Brasil, a ser protagonizado por travestis e transsexuais como acontece no primeiro conto, que dá nome ao livrom e fala sobre adoção. Uma inovação, pois tira a personagem-travesti da possibilidade única crime-prostituição. "Casa de Boneca", que também traz uma personagem trans, tem um final surpreendente e violento, um dos poucos que acaba com a redenção das protagonistas. É impossível não lê-lo e pensar no pequeno Raimundo brincando, escondido, de bonecas. A busca por uma casa, um lar ou uma família que fuja da ditadura normativa permeia suas narrativas potentes.
(re)Escrevendo sua história em São Paulo, Raimundo reescreve o clichê do escritor sudestino de blazer e barba que domina nossas imaginários e premiações. Enquanto acaba de terminar um novo romance, o autor se dedica a performances de pole dance que divulga em seu Instagram calçando saltos. "O que é um corpo digno, o que é uma arte digna, uma arte limpa? O Pole Dance vem das strippers, mas pra mim é arte pura." E aproveita para falar sobre os discursos que querem colocar artes como o pop, pole dance ou o funk, tradicionalmente associadas aos artistas LGBTQI+, como "menores": "são práticas revolucionárias que não são o que as tradições esperam e querem, então vai se produzindo um discurso que afasta essas práticas do que é tido como válido, bonito, o que deve ser visto, o que deve ser valorizado e, portanto, investido". É difícil encontrar algo mais revolucionário em nossas artes, em nossa literatura, do que a prosa rasgante dessa "bicha nordestina", que baila de salto, se recusando a morrer ou se enquadrar no livro que o mundo já havia escrito para ele.
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