Spike Lee brasileiro para que(m)? A revolução invisível de cineastas negros
"Algumas perguntas já dizem muito só pela necessidade de serem feitas, né? Quando a gente escuta o mainstream falar de referências do cinema, normalmente a lista que vem tem uma cor só. Cinema negro e cinema LGBT, por exemplo, são fazeres que precisam ser nomeados, porque senão parecem ser invisíveis." Carol Rocha, 26, responde na lata quando pergunto se ela tinha referências de diretoras negras quando começou a se aventurar pelo audiovisual.
A jovem cineasta e jornalista é inquieta e multiplataforma. "Nunca consegui dizer que minha relação com o audiovisual foi uma paixão à primeira vista, porque a sensação na época foi daquele tipo de encontro em que você olha a pessoa e tem certeza que nada vai acontecer porque ela é muita areia pro seu caminhão. Como se o cinema não fosse o meu lugar porque, afinal, eu nunca tinha visto ninguém parecido comigo ali."
Rocha, que já conheceu África do Sul e Pantanal graças ao seu trabalho, se define como "sapatão que faz filmes e escreve" em sua conta no Instagram. Ela fundou a Pujança, uma produtora audiovisual, com outras duas jovens cineastas negras: Camila Izidio, sua melhor amiga, e Karoline Maia, que assina a direção de "Aqui não entra luz", o primeiro longa-metragem da Pujança. "Nós percorremos cinco estados brasileiros para falar sobre a relação entre o quarto de empregada e a senzala.", conta Carol que fez a direção de fotografia do longa, em parceria com Camila.
Quem precisa de um Spike Lee brasileiro?
O lamento pelo Brasil "não ter seu Spike Lee" (diretor afro-americano, vencedor de inúmeros prêmios, entre eles o Oscar de melhor roteiro adaptado e o Grand Prix, em Cannes), foi feito pela produtora e roteirista branca Antonia Pellegrino em entrevista para o colunista do UOL Maurício Stycer. Antonia se defendia das críticas recebidas por ter escolhido o nome do cineasta José Padilha (branco e associado a ideias de direita) para dirigir o seriado sobre a vereadora do PSOL Marielle Franco, assassinada em 2018. Na entrevista, Antonia, suspirando, dizia que até tinha cogitado um diretor negro para a série "se tivesse um Spike Lee, uma Ava DuVernay?"
"Essa declaração é infeliz de tantas formas, né?", reflete o cineasta mineiro Gabriel Martins, 32, criado na periferia de Contagem (MG), e um dos fundadores da genial produtora "Filmes de Plástico". "Acho que é uma declaração acima de tudo muito cínica, né? Porque vem também de uma pessoa privilegiado que parece não entender que para existir um "Spike Lee brasileiro" precisa ter várias coisas juntas; a começar por oportunidades, espaço e dinheiro."
Gabito, como Gabriel é conhecido, fundou a produtora Filmes de Plástico, em Contagem, 2009, com os diretores André Novais Oliveira, Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo Correia. Nos últimos 11 anos, os filmes dos mineiros foram selecionados para mais de 200 festivais e ganharam 50 prêmios. Produções como "No coração do mundo" (2019) e "Ela Volta na Quinta" (2014) traziam vizinhos e parentes dos diretores em atuações naturalistas e uma visão intimista, nada exótica, das periferias brasileiras. Uma visão que fugia dos clichês que condenavam os pobres do Brasil à representações eternamente atreladas à violência, tráfico e seca. As quebradas de Contagem, da Filmes de Plástico, são um microcosmo que representa a pluralidade gigante das periferias do Brasil, lar, no final das contas, da maioria dos cidadãos deste país. "Acho que já existe gente [negra] com talento para ter uma série nas mãos. [Dizer que não temos um Spike Lee brasileiro] é uma afirmação infeliz, injusta e vem da desinformação, de não entender o que já temos no Brasil enquanto representantes de um cinema negro.", diz Gabriel Martins.
Cria do Jardim Piratininga, periferia da zona leste de São Paulo, Carol Rocha concorda e bate mais forte: "Quem precisa de um Spike Lee brasileiro é o racismo, o mesmo racismo que gosta do cinema negro de raros, de poucos, da lista de cotas, dos pequenos notáveis que não se multiplicam. É uma lógica completa de exclusão, como quem diz 'o Brasil não tem um talento, mas se tivesse seria apenas um, como o Spike Lee'. Acredito no audiovisual de muitos, na democratização do fazer imagem, no cinema coletivo de pessoas como a Vita Pereira, a Stheffany Fernanda, o Rosa Caldeira e o Nay Mendl, por exemplo, que dirigiram em conjunto o curta Perifericu, vencedor do 27º Festival Mix Brasil."
O inconformismo da multi talentosa Carol Rocha se justifica pelos dados do cinema nacional. Em 2018, a ANCINE divulgou uma análise de todos longa-metragens lançados em 2016. Apenas 2,1% eram dirigidos por homens negros e nenhum havia sido realizado por uma cineasta negra. O Gema (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), ligado à UERJ, analisou os filmes nacionais de maiores bilheterias lançados entre 1995 e 2016. Os números saíram idênticos aos da Ancine: 2% de filmes dirigidos por homens negros e nenhum por uma mulher negra. "Não temos um problema de falta de criadoras negras com talento", diz Carol "o que temos é uma estrutura racista com medo de perder o pódio, justamente porque sabe que nós, cineastas negras, estamos criando arte com processos criativos profundos, e movimentando discussões que desarmam as lógicas postas."
A ideia de um cinema brasileiro negro, dirigido e protagonizado por negres, já havia sido teorizada pelo cineasta de Taubaté Jeferson De (M8 - Quando a morte socorre a vida). Autor de diversos longas, como Broder, Jeferson foi constantemente chamado de "Spike Lee brasileiro", para seu desgosto. O diretor criou, em 2000, o Dogma Feijoada; cujo manifesto definia:
1. O filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro;
2. O protagonista deve ser negro;
3. A temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira;
4. O filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes;
6. Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos;
7. O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro. Super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.
Assista Kbela, filme da cineasta Yasmin Thayná:
Aquilombando o cinema
O primeiro longa-metragem brasileiro (O Crime dos Banhados) foi filmado em 1914. Só 70 anos depois uma mulher negra, a pioneira Adélia Sampaio, dirigiu um longa em nosso país (Amor Maldito, de 1984). "A possibilidade de contar histórias com imagens foi uma das coisas maispotentes que me aconteceram, sendo uma mulher negra, lésbica e vinda da periferia da zona leste de São Paulo. Porque fazer imagens é também tomar para si parte da responsabilidade de construir uma memória cultural; e essa memória é perigosa, porque ela move multidões. Nossa história e nossas imagens têm sido feitas por mãos brancas, e quebrar essa exclusividade afeta toda uma engrenagem", diz Carol Rocha. A mudança mínima nessa engrenagem que vinha sendo detonada por nomes como Carol e Gabriel, mas também por André Novais Oliveira (diretor do excelente "Temporada"), Naná Prudêncio ("Pandemia do Sistema"), Yasmin Thayná ("Kbela"), Sabrina Fidalgo ("Rainha"), Camila Moraes ("O caso do homem errado"), Mariana Campos ("Minha História é outra"), entre outres, passou a correr risco com as mudanças nas políticas de incentivo à cultura durante o governo Bolsonaro.
Assista "Rainha" de Sabrina Fidalgo:
"Existe um projeto consciente de aniquilação dessas vozes. Mas de alguma forma essas vozes não serão caladas, porque essas pessoas vão arrumar outras formas de fazer filmes.", diz Gabriel Martins, cujo curta Nada, exibido em Cannes, foi patrocinado pelo programa público Curta Afirmativo "Nosso cinema é muito dependente de dinheiro público. A gente não tem nenhuma estrutura sustentável, justa, plural no setor privado. Não vão ser as redes de streaming que vão se dar contas disso. Eu acho que esse golpe que estamos sofrendo já há um tempo, ele, sim, resulta em um desaceleramento de potências que vinham sendo construídas, mas eu não acho que ele vai apagar de maneira alguma essas vozes. Acho que essas vozes vão fazer curtas, vão fazer longas de baixo orçamento?"
Carol Rocha, que escreve um livro sobre famílias de mulheres lésbicas chamado "Duas da Silva", completa: "A Pujança começou com um edital público de incentivo a produções culturais periféricas, e a partir dali conseguimos criar muitas coisas. Se programas de incentivo audiovisuais são descontinuados, quem perde com isso são as pessoas que criam sem terem recursos, sem serem herdeiras. Essa lógica mantém a história como ela sempre foi escrita, pelas mãos das mesmas pessoas."
O Brasil que os filmes dessas cineastas negras revelam é um Brasil ainda inédito nas telas do cinema e nas televisões brasileiras. É irônico que a forma artística mais popular no país, o audiovisual, seja, também, a mais elitista. Nossas novelas, seriados e filmes são produzidos por herdeiros e milionários brancos do sudeste para serem consumidos pelos trabalhadores comuns que, em sua complexidade, vão muito além dos Zé Pequenos ou do Capitães Nascimentos aos quais o cinema nacional, na melhor das hipóteses, os reduz.
Essa identidade nacional gerada pelas imagens que nos representam têm um valor político e social gigante. Não à toa, o governo federal passou a atacar nossa produção assim que ela deixou de ser tão elitizada. "Muito se fala sobre sobre o amor à arte, mas além do amor é necessário falar do valor também.", diz Carol Rocha. Quem controla as narrativas hoje, controla nossa passado e nosso futuro. As coisas no Brasil não são como são à toa.
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