Eleito intelectual do ano, Aílton Krenak ensina: "A vida não é útil"
"Quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro".
Alguém duvida da frase acima? Eu, particularmente, já conheci humanos capazes de se alimentarem de formigas, gafanhotos e até escorpiões, mas nunca me deparei com alguém que devore dinheiro. Existem, vá lá, uns e outros que declaram viver de luz, mas dietas a base de ouro parecem pouco nutritivas mesmo aos mais ambiciosos bilionários.
O trecho que abre este texto soa óbvia, mas vivemos tempos em que o óbvio se tornou raro. É mais fácil acreditar que podemos viajar pelo espaço e colonizar Marte do que crer na possibilidade de consumirmos menos para evitar a extinção da humanidade. O pensador das ruas Eduardo Marinho, cujos vídeos fazem muito sucesso no Youtube, costuma dizer que tudo o que diz são obviedades, coisas repetidas milhares de anos atrás por gente como um tal Jesus Cristo, mas parece que nossa capacidade cognitiva para captar o comum se rarefez. Perdemo-nos em incessantes discussões e guerras ideológicas promovidas por sofistas e charlatões que se autodeclaram filósofos e criam nuvens de fumaça que escondem o real de nossos olhos.
Talvez por isso, o trabalho do líder indígena, ambientalista e escritor Aílton Krenak, 67, esteja tão em evidência. É do seu novo livro, "A vida não é útil" (Companhia das Letras), a frase que abre este texto. Krenak, que eu entrevistei algumas vezes aqui para o ECOA, também acaba de receber o importante Prêmio Juca Pato de Intelectual do ano. Se não estou falando besteira, ele foi o primeiro indígena a receber a premiação que já coroou figuras como Sérgio Buarque de Hollanda e Fernando Henrique Cardoso. Krenak é um pensador que não faz rodeios parnasianos para comprovar teorias elegantes que não dizem nada à vida prática. Como diria o poeta do Capão Redondo, Aílton foca no "certo é certo": estamos destruindo o mundo, a maior parte da humanidade não desfruta dos benefícios da "modernidade", a forma como tratamos o planeta em que vivemos será nossa pena de morte.
Seguindo a tradição milenar, o filósofo indígena transmite seu pensamento pela oralidade e, posteriormente, suas falas são convertidas em textos "escritos". São mensagens diretas, que abalam as estruturas que sustentam nossa sociedade.
"Quem sabe a própria ideia de humanidade, essa totalidade que nós aprendemos a chamar assim, venha a se dissolver com esses eventos que estamos experimentando. Se isso acontecer, como é que os caras que concentram a grana do mundo — que são poucos — vão ficar? Quem sabe a gente consiga tirar o chão debaixo dos pés deles. Porque eles precisam de uma humanidade, nem que seja ilusória, para aterrorizarem toda manhã com a ameaça de que a bolsa vai cair, de que o mercado está nervoso, de que o dólar vai subir. Quando tudo isso não tiver sentido nenhum — o dólar que se exploda, o mercado que se coma! —, aí não vai ter mais lugar para toda essa concentração de poder. Porque a concentração, de qualquer coisa, só pode existir num determinado ambiente."
Krenak, que fez aniversário nesta terça (29), não surgiu na luta hoje. Foi fundamental durante a elaboração da Constituição de 1988, que garantiu direitos básicos aos povos originários deste pedaço de terra que chamamos de Brasil.
"Eu faço também artesanato, pintura,escultura, desenho,escrita não tem centralidade em minha criação, sou também roteirista e radialista", me contou ele em uma pequena entrevista realizada este ano. Influência forte da nova geração de artistas-ativista indígenas (como a pesquisadora e poeta Julie Dorrico e o rapper Kunumi MC), Krenak é um dos poetas convidados por Dorrico na excelente antologia "Poesia indígena hoje", que você pode ler de graça no site do belo PROJETO P-O-E-S-I-A.ORG .
Segundo seus organizadores, "o P-O-E-S-I-A.ORG tem como objetivo o fortalecimento da poesia brasileira em todas as suas dimensões, através da articulação entre poetas, escritores, leitores, artistas, professores e apoiadores da cultura." Dorrico foi a primeiro curadora convidada pelo projeto e reúne em sua antologia nomes fortes como Márcia Wayna Kambeba, Olivio Jekupé, Eliane Potiguara e Graça Graúna.
"Cantando, dançando,
Passando sobre o fogo
Seguimos os rastros de nossos ancestrais
No continuum
da tradição
*
O meu pai
que é o fogo
ele queima sem cessar
O que meu pai
que é o fogo
ele queima sem cessar
Ele queima, queima queima
queima, sem cessar
Ele queima o que já foi
Ele queima o que será
ele queima, queima, queima
queima sem cessar". (Aílton Krenak, Tradição I, "Poesia indígena hoje")
É bonito ver Aílton Krenak colocando na prática a fruição da vida que ensina, sem a especialização castradora pregada pelo mercado e seus coachs, onde você escolhe (ou é escolhido pela necessidade) uma profissão quando está saindo da adolescência e tem que se especializar nela pelo resto da vida, até se aposentar o mais idoso possível como uma "apertador de parafusos sênior", pronto para morrer. "Talvez o que incomode muito os brancos seja o fato de o povo indígena não admitir a propriedade privada como fundamento.", escreve Aílton.
Assim como em "Ideias para adiar o fim do mundo" (Companhia das Letras, 2018), "A vida não é útil" apresenta uma anticapitalismo que não é fundamentado nas ideias marxistas ou europeias. Também não é baseado em uma utopia que nunca existiu ou em sistemas totalitários cheios de calcanhares de Aquiles. É baseado na experiência real de todos que viviam no Brasil (e em boa parte das Américas) até 1500. A alternativa de vida pensada por Krenak existe e existiu. Krenak nos lembra, com seus escritos - falas, que a vida não é uma opção binária entre vermelho e azul, comunismo e capitalismo. Krenak nos faz pensar a quem interessa calar todas outras cores e vivências do mundo resumindo o debate às opções europeias de adiar o fim do mundo?
O que remete diretamente a outro pensador e ativista indígena, Daniel Munduruku, que me disse que os "únicos comunistas que existiram no Brasil chamam-se povos indígenas". "São esses que não mantém propriedade privada, que são pelo coletivo, que têm um modo de vida simples, que dividem tudo entre si.", contou Munduruku, que assina um dos ensaios da antologia "Poesia indígena hoje", organizada por Julie Dorrico.
Não me parece mero acaso, que tantas vozes indígenas ganhem os holofotes midiáticos bem na época em que o populismo de extrema-direita se espalhe pelo mundo, impulsionado pela crise de um capitalismo que sugou tanto a Terra a ponto de ameaçar nossa existência e que já não sustenta a ilusão de que um dia todos viverão como um CEO do Vale do Silício. Essas vozes são amplificadas, também, em um momento de descrença com a social-democracia, quando a esquerda "tradicional" se apresenta com dificuldades de reagir ao terror presente..
Talvez seja a hora de esquecermos os quilos de retórica, dados e teorias; e escutarmos o que o planeta tem nos gritado de forma pouco sutil. Talvez seja a hora de olharmos a vida como ela é: inútil e maravilhosa. Ou como diz o sempre preciso Krenak: "Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis. É por isso que muita gente morre cedo, desiste dessa bobagem toda e vai embora."
Leia:
- "A poesia indígena hoje", organização Julie Dorrico (grátis)
- "O amanhã não está à venda", Aílton Krenak (grátis)
- "A vida não é útil", Aílton Krenak (Companhia das Letras, 2020)
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