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Fred Di Giacomo

Um exu em Berlim: como apresentei o velho oeste paulista para os alemães

 O poeta alemão Martin Jankowski e Fred Di Giacomo - Graham Hains
O poeta alemão Martin Jankowski e Fred Di Giacomo Imagem: Graham Hains

29/10/2020 04h00

Voltamos no tempo uma semana agora. Nesta viagem, convido-lhes para uma noite no evento literário PARATAXE, que reúne, em Berlim, autores cuja língua materna não é o alemão. Estou neste país cinza do norte europeu há dois anos agora. Nasci muitos quilômetros daqui, num lugar que chegou a bater 45 graus durante a seca primavera brasileira. Quem sou eu? Essa figura de barba e boné vermelho, encarando o microfone em cima do palco, pensando no que falar aos alemães sentados, confortavelmente com suas taças de vinho. Alemães que nada sabem sobre o mato onde nasci e me criei: Penápolis.

"Eu tenho saudades daquelas árvores velhas

das suas cascas,

O cheiro de suas flores

E suas folhas secando no chão.

Sinto saudades de trepar na pitangueira

e na mangueira sábia,

De sentir suas rugas roçando no peito;

Saudades da pequena jabuticabeira cabeluda

E da acerola que ocupava, meditativa, o centro do quintal(...) "
("Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa", Fred Di Giacomo.)

Cavalo
"Desamparo" (Editora Reformatório, 2018), meu primeiro romance, é um livro narrado por um espírito incorporado. Eu sou o cavalo do cavalo que recebeu esse espírito. Naquela noite fria em Berlim, para começar a falar de "Desamparo", a biografia psicografada do mato onde nasci, precisei abrir a noite com um ponto de exu.

Depois, era necessário deixar claro para os alemães presentes que eu não estava ali sozinho. Eu era o cavalo que outros cavalgavam. Os que não puderam estar ali, os que não tiveram a mesma sorte (ou privilégio) que eu. A molecada do meu bairro, os que foram presos, os que morreram, os que se envolveram com a química, os que nunca saíram da nossa cidade, os que trabalham no pesado.

Junto comigo estava minha família, minha cidade, minhas raízes, e as nações que morreram para que essas cidade fosse erguida em solo kaingang e oti-xavante. Por isso escolhi ler meu poema "Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa" na sequência do ponto. É minha biografia poética, é uma homenagem ao todo do qual sou pequena parte.

"(...) O velho quintal era um universo místico,

Uma selva, um templo, um picadeiro

Marcado por árvores que eu conhecia de cór.

Como o limão cravo que se enroscava amoroso no pé de boldo.

Até dos pequenos morcegos eu sinto falta, quando devoravam as frutas

Faziam barulhos e, às vezes, se perdiam, cegos, dentro de casa, como as aleluias que se amavam, intensas, no verão.

Saudades das cigarras barulhentas

E das formigas bundudas. (...) "
("Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa", Fred Di Giacomo.)


O programa seguia: eu e o poeta alemão Martin Jankowski (que já participou da FLUP, Festival Literário das Periferias, e tem alguns poemas traduzidos para o português) falamos "teoricamente" do que tento trazer aqui de forma mais visceral: decolonialismo, pós-humano, realismo mágico? Tanto faz, para mim o importante naquela noite era a emoção, mais que a razão.

Fred Di Giacomo lendo seu poema "Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa" - Graham Hains - Graham Hains
Fred Di Giacomo lendo seu poema "Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa"
Imagem: Graham Hains

A experiência de assistir Bastienne Voss, uma escritora e atriz alemã nascida na Berlim comunista, lendo meu conto (ainda inédito no Brasil) "Damas" em alemão foi avassaladora. A tradução da escritora franco-alemã Odile Kennel melhorou minha prosa. Odile é a tradutora da poeta gaúcho Angélica Freitas na Alemanha.

Parecia que não era comigo que aquelas cenas se passavam. Meus textos caipiras em alemão? Justo comigo que até os 19 anos mal falava inglês?

"(...)Depois foi só concreto, prédio

Avenidas, carros

Neve,

E eu tão distante de mim que me perdia

Sem me conhecer.

E vocês com seus tribunais no olhar

Achando que eu surgira ontem, por geração espontânea,

Em alguma rua de Pinheiros,

Em algum meeting de publicidade,

Em algum café com menu escrito a giz na parede negra que queria estar em Williamsburg. (...)"
("Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa", Fred Di Giacomo.)

A escritora e atriz alemã Bastienne Voss lê trechos do romance "Desamparo" -  Graham Hains -  Graham Hains
A escritora e atriz alemã Bastienne Voss lê trechos do romance "Desamparo"
Imagem: Graham Hains

Toda literatura é regional
A noite já havia passado do tempo programado. Não havia espaço para a leitura dos trechos do meu romance "Desamparo" traduzidos. Martin, no entanto, mudou o programa ao entender que o livro tinha mais a falar sobre aquecimento global, Bolsonaro e destruição ambiental do que parecia para uma obra, supostamente, "histórica". Ele percebeu naquele momento que "Desamparo" não era algo apenas exótico e "regional".

"(...)Vocês não conhecem o cheiro da terra seca que a chuva molha,

Nem a textura da fruta pão,

Nem o pé de mexerica que nunca vingou.

Vocês não cravaram o casco do pé no espinho da primavera fundo,

Nem viram a grama morrer de sede e perder lugar

Pro mato oportunista,

Não.

Vocês acham que me conhecem,

Mas mal se interessam em perguntar de onde eu vim

E já julgam o passado pelo futuro.

Não, meus amigos, em qualquer lugar do mundo,

Vocês

Não me conhecem, não,

Nunca vão conhecer

Tão longe das árvores

Que me viram crescer."
("Minhas raízes eu partilho com as árvores de casa", Fred Di Giacomo.)

Fred Di Giacomo no evento PARATAXE, Berlin - Graham Hains - Graham Hains
Fred Di Giacomo no evento PARATAXE, Berlin
Imagem: Graham Hains

Ouvir o espírito de Rita Telma (protagonista de "Desamparo") incorporado em um médium, incorporado por mim, incorporado por Odile que a traduziu e finalmente incorporado por Bastienne em sua performance foi uma das coisa mais intensas da minha vida.

Inglês, alemão, português, kaingang viraram uma língua só. O monólogo final de "Desamparo" foi o ponto alto da minha apresentação. No final, só podia sentir gratidão brutal. Sentia que estavam comigo muitos outros galhos nascidos das raízes profundas que eu nunca esqueci. Que eu nunca vou esquecer. "Toda literatura é regional", me ensinou, aqui nessa coluna, a finalista do Prêmio Jabuti Jarid Arraes.

Eu eu falei para os alemães "a prosa da minha cidade, a história dessa pequena cidade é tão importante quanto a história de Berlim. E isso é de(s)colonialismo, não comprar café orgânico e fair-trade da Etiópia".

Estou voltando para casa, votando para o Brasil. laroyê, Exu!