Pequena biblioteca da literatura indígena brasileira
Esqueça a carta de Pero Vaz de Caminha ou os sábios sermões do Padre Antônio Vieira. O cânone da literatura brasileira começa há muito mais de 500 anos, quando centenas de civilizações que habitavam essas terras tropicais contavam suas histórias, inventavam seus heróis e heroínas e sofisticavam seus mitos.
Algumas dessas narrativas e mitologias foram transformadas em escritas não alfabéticas - como na incrível "Capela Sistina da antiguidade" (veja vídeo abaixo), na Amazônia colombiana, divulgada este ano pelo seriado "Jungle Mystery: Lost Kingdoms of the Amazon". Outras escritas não alfabéticas estão nos desenhos corporais prenhes de significado das diferentes nações indígenas ou nos artesanatos ricamente trabalhados da Cultura Marajó.
Acadêmicas indígenas como Julie Dorrico e Graça Graúna dividem a literatura nativa brasileira entre "clássica" (as histórias orais e coletivas das civilizações indígenas passadas de geração para geração) e "contemporânea", que é a literatura indígena escrita e assinado por autores individuais.
Na Arte fora dos Centros, já conversamos com diversos autores e autoras indígenas contemporâneos importantes (entre eles, Daniel Munduruku, Julie Dorrico, Eliane Potiguara e Aílton Krenak). Inspirado por esses diálogos, selecionei 12 obras fundamentais para quem quiser conhecer nossos autores e autoras indígenas.
Que tal ler um autor indígena no ano que vem? Um, não, uma dezena!
12 obras que você precisa ler para conhecer (minimamente) a literatura indígena brasileira em 2021:
DORRICO, Julie. Eu sou Macuxi e outras histórias (Caos & Letras, 2019)
A obra poética de Dorrico "seria classificada como de "contos" no cânone ocidental, mas não se apega à escravidão da forma para transformar a biografia de Julie e seus parentes em narrativa mítica e até para "fazer com o deus cristão o que Mário de Andrade fez com o deus Macuxi", transformando-o em um caçula birrento dos deuses ameríndios, pai do povo mercadoria. Nessas passagens é notável uma influência da narração oral-poética-xamânica de Davi Kopenawa nos contos de Julie, mas dialogando, de forma crítica, com o modernismo brasileiro"
Nesta coluna, escrevi bastante sobre a potente estreia literária da acadêmica Julie Dorrico, em um livro lançado pela valente editora Caos & Letras.
GRAÚNA, Graça. Canto Mestizo, (Blocos, 1999)
Os poemas de "Canto Mestizo" são um marco pioneiro na literatura indígena contemporânea, lançados ainda no final dos anos 90, pela potiguar Graça Graúna, que além de escritora é, também, doutora em literatura indígena contemporânea no Brasil, pela UFPE, com grandes contribuições na teoria literária aplicada à literatura nativa.
JEKUPÉ, Olivio. 500 anos de angústia (Scortecci Editora, 2015)
Olivio, pai do rapper Kunumi MC, está ativo na literatura desde os anos 80, inicialmente de maneira independente e escrevendo para adultos.
"Comecei a escrever poesias em 1984, só que eu não tinha experiência e não conhecia nenhum escritor indígena com livros publicados. Mas na verdade já tinha um livro: dois indígenas Desana [Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri], da Amazônia, publicaram ["Antes o mundo não existia"], em 1980, foram os primeiros indígenas a escrever um livro.", me contou Olivio em entrevista para esta coluna.
JEKUPÉ, Kaka Werá. A Terra dos Mil Povos - História Indígena do Brasil Contada por um Índio ( Fundação Peirópolis, 1998)
"O Kaka Werá, eu acho que foi o grande pioneiro de lançar livros, só que os livros dele não eram para criança", disse Daniel Munduruku, o autor indígena que criou o filão de "histórias indígenas para crianças".
Kaka, da etnia guarani, é um dos mais respeitados autores indígenas. Suas falas foram fundamentais para que Julie Dorrico, por exemplo, se descobrisse indígena. "Saí do casulo, virei borboleta", disse a escritora e acadêmica sobre a transformação influenciada pela obra de Werá.
KAMBEBA, Márcia. Ay kakyri tama - Eu moro na cidade (Jandaíra, 2018)
"Eu moro no cidade" transforma em poesia uma das grandes lutas da população indígena brasileira: lutarem contra o apagamento dos nativos que vivem nas cidades (em aldeias ou não) e contra a imposição dos brancos do estereótipo que reza "só é índio quem anda pelado na selva".
Kambeba, que é geógrafa, ativista e poeta, derruba essa ideia preconceituosa com poemas que vem acompanhados por fotos do dia a dia do seu povo.
KENHÍRI, Tolamãn e KUMU Tolamãn Kenhíri Antes o mundo não existia (Livraria Cultura Editora, 1980)
Em "Antes o mundo não existia" acompanhamos a história da criação do mundo, o gênesis, do povo Desana, que habita o estado doAmazonas. A obra, que faz a transição de autoria individual para coletiva e da narração oral para a escrita, conta com prefácio e introdução da antropóloga Berta Ribeiro.
KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019)
"Ideias" condensa 4 falas de Krenak em um texto simples, mas muito profunda e importante para os que pensam formas possíveis de viver em uma humanidade em crise.
MINÁPOTY, Lia. Com a noite, veio o sono (Leya, 2011)
Nos anos 2010, uma corrente importante da literatura indígena contemporânea focou seus esforços em transformar lendas e mitos, da tradição oral, em belos livros ilustrados para crianças.
Um dos exemplos bem-sucedidos dessa caso é "Com a noite, veio o sono", história ancestral do povo Maraguá transformada em uma poética narrativa por Lia Minápoty. Através da prosa de Lia e das ilustrações de Maurício Negro, aprendemos como a noite foi inventada, possibilitando que os humanos dormissem.
MUNDURUKU, Daniel. O Karaíba: uma história do pré-Brasil (Melhoramentos, 2018)
Como já escrevi alguns parágrafos atrás, Daniel Munduruku foi o pioneiro na criação de livros com mitos indígenas adaptados para crianças urbanas, o que o transformou em um dos nomes mais conhecidos da nossa prosa.
No entanto, o livro que escolhi para esta lista é voltado para o público jovem, sendo facilmente apreciado por adultos. Trata-se de uma aventura passada pouco antes do "descobrimento" do Brasil, protagonizada pela nação tupinambá e com tudo para ser adaptada para um ótimo filme de ação.
E de onde vem a inspiração para a obra do doutor Daniel Munduruku - acadêmico, professor e escritor de dezenas de livros? "Filmes de ação. Eu me amarro", me contou ele.
NEGRO, Maurício (org.), vários autores Nós: Uma antologia de literatura indígena (Companhia das Letrinhas, 2019)
Para quem está interessado nos mitos e lendas da "literatura indígena clássica", a antologia "Nós" é uma ótima introdução. Lindamente ilustrada (e organizada) pelo ilustrador, escritor, designer e pesquisador Maurício Negro ela reúne dez histórias contadas ou recontadas por escritores de diferentes nações indígenas.
POTIGUARA, Eliane Metade cara, metade máscara (Global, 2010)
É difícil colocar "Metade cara, metade máscara" em uma caixa. Escrito pela fundamental, Eliane Potiguara, a obra mescla relato pessoal, não-ficção e poesia em um amálgama potente que resume uma vida farta de luta e aventura.
"Agradeço ao Daniel Munduruku por ter me dado apoio e ter aberto espaço na Global Editora para lançar 'Metade cara, metade máscara', que é um livro totem, como diz Aílton Krenak", contou a grande Potiguara a essa coluna.
YANOMAMI, Davi Kopenawa & ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (Companhia das Letras, 2015)
Não conheço nenhuma definição melhor (e com tamanho poder de síntese) de "A queda do céu" do que a feita pela escritora pernambucana Micheliny Verunschk em colaboração para a revista Cult:
"Considero A queda do céu, de Davi Kopenawa, o livro sagrado do Brasil, como o Mahabharata, a Torá e outros livros sagrados de outros povos. Todo ele é história, poema, aquilo que É."
Da grandiosa obra de Kopenawa, Verunschk destaca o seguinte trecho:
"Em todos os lugares onde vivem humanos, a floresta é assim povoada de espíritos animais. São as imagens de todos os seres que andam pelo solo, sobem pelos galhos ou possuem asas, as imagens de todas as antas, veados, onças, jaguatiricas, macacos-aranha e guaribas, cutias, tucanos, araras, cujubins e jacamins. Os animais que caçamos só se deslocam na floresta onde há espelhos e caminhos de seus ancestrais yarori que se tornaram espíritos xapiri. Quando olham para a floresta, os brancos nunca pensam nisso. Mesmo quando a sobrevoam em seus aviões, não veem nada. Devem pensar que seu chão e suas montanhas estão ali à toa, e que ela não passa de uma grande quantidade de árvores. Entretanto, os xamãs sabem muito bem que ela pertence aos xapiri e que é feita de inúmeros espelhos. Os espíritos que vivem nela são muito numerosos do que os humanos e todos os demais habitantes da floresta os conhecem!"
Davi Kopenawa em A queda do céu, Companhia das Letras.
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