A arte de Altamira Borges: celebre uma mulher negra enquanto ela vive
"As pessoas me perguntam porque eu pinto tanta noiva e casamento. É porque, quando eu me casei, casei numa cidadezinha muito humilde. E eu queria uma coisa mais bonita: casar na igreja, tirar minhas fotos, fazer um álbum para, quando eu tivesse meus filhos, poder mostrar para eles, né? Para os netos... Aí, não deu certo casar na igreja e foi só no cartório. E, no cartório, não tiraram minhas fotos. E eu estava vestida de noiva e tudo, mas fiquei com aquilo na cabeça. Guardei o vestido de noiva dez meses e meu marido falou 'um dia a gente vai na igreja e tira as fotos', mas aí, não tinha mais graça, né? E não tirou. E eu fiquei com aquilo na cabeça, Então, quando eu ia pintar eu só sabia fazer noiva e igreja."
A clareza com que Altamira Pereira Borges, 88, explica a fonte inconsciente de sua arte vibrante, calcada no trauma da juventude, daria inveja à Freud e exigiria anos de análise de pessoas comuns. Mas Altamira trilha o incomum. Nascida na minúscula Jacaraci, cidade do interior baiano, onde hoje habitam apenas 13.656 almas, Altamira resolveu o trauma da falta de fotos de casamento, celebrado em 1951, retalhando o vestido de noiva e pintando-o de verde. Uma artista contemporânea do sudeste chamaria isso de performance e seria aplaudida pelos cadernos culturais dos jornais.
"Toda vida eu gostei de pintar, desde criança, né? Eu pintava na escola, mas não tive muito tempo de estudar. Só estudei até terceiro ano e tive que sair. Aí, fui trabalhar e nunca mais estudei. (...) [Quando] comecei a pintar, não dava muito valor para as pinturas que eu fazia. Colocava [os quadrinhos] nas paredes, em um canto, no outro... Quando eu vim para Penápolis (SP), depois de muito tempo, meu marido faleceu e eu pintava muito à noite para me distrair, né?"
Bom, leitores e leitoras, nasci e me criei em Penápolis e não conhecia a trajetória de Altamira. A pintora, que os críticas chamam de naif, desenvolveu suas técnicas a partir de 1982 quando passou a frequentar o ateliê do Museu do Sol, primeiro museu de arte naif da América Latina, localizado na princesinha da noroeste, Penápolis. Sua história está contada no belo "Naif - A Arte do Povo", documentário produzido por Rafael Freitas e Thiago Tonello, da Under Filmes.
Com mais de 80 anos, a prolífica Altamira encontra-se acamada. Por isso não consegui entrevistá-la para esta coluna. Os depoimentos que você lê aqui foram pescados por Rafael e Thiago, para o documentário "Naif", e me fizeram pensar como, numa cidade de 60 mil habitantes, uma figura genial como dona Altamira pode passar anônima. É preciso que Altamira morra para que celebremos essa mulher negra, nordestina e periférica como fizemos com Carolina Maria de Jesus e Stela do Patrocínio?
Museu do Sol
Início dos anos 80, imperava ainda a ditadura militar no Brasil. Na Penápolis, longe e quente, Altamira, migrante baiana, registrava o mundo em sua banca de feira, no Mercadão Municipal da cidade, enquanto nenhum cliente surgia para comprar hortaliças. Quando calhava de restar tempo, pintava as pessoas que por ali passavam.
_ Dona Altamira, você não vai pro Museu? Tinha um rapaz que pintava e trabalhava aqui no Mercadão e, depois que ele foi no Museu, acabou até indo nos Estados Unidos para pintar.
_ Ah, mas as coisas que eu faço não é coisa de valor
_ Claro que é, Dona Altamira.
Altamira sempre reforça em suas falas que não dava valor para o que fazia; que não teve estudo, que não tinha técnica. O quanto um artista plástico popular tem que lutar contra sua própria autoestima para batizar-se artista? O quanto uma pessoa que já é um talento, tem estilo e voz própria precisa ser "certificada" pelo mainstream branco para sentir-se o que sempre foi: artista.
"Aí, um dia me deu a ideia de ir pro Museu do Sol. Levei uns trabalhos que eu tinha e mostrei para a diretora. Ela me perguntou:
_ Nossa, Altamira, é você que faz isso, você que inventa?
_ É...
_ Está muito bom, muito bom, a senhora tem criatividade. Vem pintar aqui no Museu do Sol.
Localizado no meio do sertão paulista o Museu do Sol reúne obras de artistas como o rei da xilogravura J.Borges e o sambista e artistas plástico Heitor dos Prazeres. A instituição oferece, também, aulas de pintura e de música e um ateliê para artistas "naif" ou "primitivos"; artistas populares. "Arte naif é a pessoa que não teve faculdade, não teve estudo, não teve nada e inventa as coisas da própria natureza, né?", ensina Altamira. "Conforme eu via as coisas eu fui criando. Eu uso muito acrílico sobre tela, eu mesmo que aprendi a misturar as cores, as que eu quero. Nunca ninguém me deu aula, tudo eu mesma invento e eu mesma faço".
Naif
Quando Altamira iniciou seus trabalhos no ateliê do Museu do Sol, a artista brasileira ainda pintava, principalmente, com guache e aquarela. No Museu, Altamira passou a usar tinta óleo e a fazer colagens tridimensionais.
Integrada à cena local, que incluía outros artistas como Osvaldo Galindo e Celso Egreja, Altamira estreou, em 1985, em sua primeira exposição: o 6º Salão de Artes Plásticas da Noroeste. Na época da redemocratização, desenrolava-se uma efervescente cena artística no oeste paulista. O trabalho de Altamira passou a chamar atenção em outros eventos como o Salão de Belas Artes de Matão (SP), o Palácio da Cultura de Presidente Prudente (SP), Bienal Naifs do Brasil, em Piracicaba (SP), o Prêmio Banco Real de Talentos da Maturidade (SP) e uma exposição no Espaço Cultural Banco Central, em São Paulo (SP).
Com o sucesso regional, Altamira pode deixar sua banca no Mercadão Municipa e dedicar-se a pintar e vender seus quadros: "Já veio gente de fora: do Chile, da França, dos Estados Unidos, Dinamarca... esses lugares todos. E eu comecei a vender tela."
Para o jornal local Diário de Penápolis, Altamira explicou a importância dessa venda: "Tenho um filho com problemas que depende muito de mim. Considero-me uma pessoa vitoriosa, pois consigo fazer aquilo que gosto, cuidar da minha casa e do meu filho, o que me deixa muito feliz".
Altamira está viva. Celebremos sua obra.
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