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Fred Di Giacomo

Neta de boto, Márcia Kambeba é a primeira indígena na prefeitura de Belém

26/01/2021 04h00

Cachimbo kambeba - José Carlos/Divulgação - José Carlos/Divulgação
Márcia Kambeba conta fazer uso espiritual de tabaco e rapé
Imagem: José Carlos/Divulgação


"Eu tinha então meus 10, 12 anos, e o bisavô Daniel contava que ele era filho de boto. Que o pai dele era boto." Se o bisavô era filho de boto, a mãe da menina era a avó. Sim, avó-mãe Assunta, pororoca de pajé e freira, a que a criou e guiou os caminhos do seu destino-rio, desde o nascimento na aldeia Ticuna, em Belém dos Solimões (AM).

Para a neta-filha, escolheram o nome da radialista mais famosa daquele Amazonas, a cantora favorita dos garimpeiros de Serra Pelada, a locutora da Rádio Nacional da Amazônia que criou a versão brasileira de "Chorando se Foi": Márcia Ferreira.

Batizada com o nome da Rainha da Lambada e parida em uma aldeia Ticuna, Márcia Vieira da Silva, conhecida como Márcia Wayna Kambeba, é indígena do povo Omágua/Kambeba e bisneta de boto. É o que ela conta ter ouvido do bisavô Daniel, todas as tardes de sua infância em São Paulo de Olivença (AM) :

"Avó Assunta [que Márcia chama de mãe] me mandava, todo dia, às três da tarde, ouvir o bisavô Daniel contar histórias.

- Mas, mamãe, o vovô conta uma história repetida...
- Escuta, Márcia, escuta calada, as várias vezes que ele contar essa história.

O bisavô Daniel dizia que o pai dele, meu trisavô, era boto e que ele tinha conhecido o mundo dos encantados, o fundo do rio. Que lá era uma cidade, como as daqui, mas bem diferente porque era a cidade da yara, dos botos e de todos os encantados que têm espírito."

Povo da Água

"Por ter sua cosmologia nas águas" o povo kambeba "é considerado o povo das águas", escreve a poeta, geógrafa, política, cantora, locutora e artista plástica Márcia Kambeba em seu terceiro livro "Saberes da Floresta" (Ed. Jandária) lançado no ano passado.

Kambebinha banho - Jussara Gruber - Jussara Gruber
Marcia Kambeba banhada pela mãe biológica na aldeia, em 1978
Imagem: Jussara Gruber

A cosmologia familiar de Kambeba também corre com os rios. Tanto sua mãe biológica, quanto a mãe-avó nasceram em localidades que não existem mais, tragadas pelas águas do Rio Solimões, fenômeno conhecido como Terras Caídas.

Hoje, Márcia é Ouvidora Geral da Prefeitura de Belém (PA), cargo que compõe o secretariado do prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL), recém-eleito. "Sou a primeira indígena a ocupar um cargo de primeiro escalão, na prefeitura de Belém".

A chuvosa Belém é uma cidade cortada por rios: Maguari, Guamá e Acará. É também uma milenar cidade indígena, conhecida como Mairi pelos tupinambás que a habitavam. Mairi foi invadida pelos europeus, no século XVII, em busca da riqueza gerada pelas drogas do sertão: guaraná, cacau, castanha do pará e urucum.

Ano passado, Kambeba foi candidata a vereadora, também, pelo PSOL, mas não se elegeu. A derrota não abala essa mulher, resiliente como borracha, erupção de empolgação - seja na fala, seja no sorriso aberto e expressivo. Produtiva, Kambeba acaba de lançar, pela editora estadunidense Underline Publishing, o livro "Kumiçá Jenó: narrativa poéticas dos seres da floresta", que define como uma mistura da narrativa dos contos, os diálogos do teatro e a estrutura da poesia. Planeja, também, iniciar o doutorado em literatura ainda em 2021.

Seus poemas rimados guardam semelhanças com o cordel e bebem das narrativas orais, tradicionais na cultura dos povos originários do Brasil, e das canções populares. Suas principais influências não são nomes hypados da literatura internacional urbana, mas sua avó-mãe Assunta e a diretora da primeira escola em que estudou, Tia Sueli. Assunta, que era professora na aldeia Ticuna, é uma figura central na formação de Márcia e um resumo da terra em transe que tem sido a região amazônica no último século. O avô de Assunta (trisavô materno de Márcia) era espanhol e veio para o norte do Brasil explorar a borracha, atividade que escravizou milhares de indígenas na região. Isidoro casou-se com Maria, uma indígena cocama-kambeba que andava nua, se recusava a aprender português e falava pouco. A fala escassa é, para Márcia, uma das diversas evidências de que a matriarca fora roubada "no laço" e casada à força com o invasor. Morto Isidoro, a família se dispersou.

Assunta nasceu em uma aldeia localizada em um barranco que o rio comeu. Foi para Manaus, sonhando ser freira, mas acabou escravizada pelas irmãs que a "obrigavam a carregar gelo, quando estava com febre". Alfabetizou-se no convento, o que permitiria, no futuro, ser professora em aldeias e comunidades ribeirinhas. Ao mesmo tempo em que era católica, a avó-mãe curava com plantas, fazia rezas, preparava rapé e tabaco. Acabou na aldeia Ticuna, etnia mais populosa da Amazônia (são mais de 50.000 ticunas espalhados por três países), e que, por séculos, foi inimiga histórica dos kambebas.

"Quem me iniciou no mundo da poesia foi minha avó, ela era poeta e compositora. Quando eu tinha sete anos, Assunta escrevia poemas e, quando os turistas vinham visitar nossa aldeia, eu recitava para eles e cantava as músicas que minha avó compunha. Quando mudei para São Paulo de Olivença, conheci Tia Sueli, que fortaleceu meu amor pela poesia. E com 13, 14 anos, comecei a escrever meus poemas."

Kambeba com a avó - Jussara Gruber - Jussara Gruber
Márcia Kambeba com a "avó-mãe", sua principal influência, 1979.
Imagem: Jussara Gruber

Além da influência dessas duas mulheres importantes na sua formação Márcia lembra ter estudado clássicos da literatura brasileira no colégio; como "O Quinze", "A Moreninha" e "Dom Casmurro''. Mas a inspiração mais forte para livros como "Kumiçá Jenó" parecem vir da sabedoria da floresta. "Eu lembro, lá na aldeia Ticuna, da Matinta. [Matintaperera, Saci ou Martim-Pererê é um pássaro brasileiro de canto marcante, considerado encantado por diversas tradições indígenas, e que deu origem às lendas do Saci-Pererê e da bruxa Matinta Pereira]. A Matinta ditava a hora da gente dormir. Um assobio fino, forte; cerca de uma hora desse assobio. Essa sensação de arrepiar, de medo, de saber que é um espírito passando, isso não tem mais."

"Tana kanata ayetu, nossa luz radiante, enviou uma grande gota d'água, que veio do céu trazendo outras duas gotas dentro de si. Bateu suave na samaumeira, por sua folha deslizou e foi lentamente se desfazendo, amparada por outras folhas, até que as duas gotas menores caíram no grande lago. Esse lago espelhava as árvores, que, submersas, sombreavam suas águas e lhe davam uma coloração escura. As duas gotas tocaram as águas e sumiram. Tudo parecia calmo, mas de repente, por detrás de um grande tronco de árvore surgiram o homem e a mulher, que juntos deixaram as águas, adentraram a floresta e começaram a fundar nossa nação", Márcia Wayna Kambeba, mito originário kambeba contado em "Saberes da Floresta" (Editora Jandaíra, 2020)

Santa Cruz

santa cruz - Acervo Pessoal de Márcia Kambeba - Acervo Pessoal de Márcia Kambeba
Aldeia de Belém do Solimões (AM), onde Márcia Kambeba nasceu
Imagem: Acervo Pessoal de Márcia Kambeba

"Minha avó-mãe pegou o Pedrinho estrebuchando atrás de casa. Meu pai gritou : 'Corre, Assunta, que o Pedrinho está morrendo'. Pedrinho, um ticuna já adulto, mas muito baixinho, jogava uma baba pela boca, como se estivesse tendo uma epilepsia. Aí, Assunta deu uma coisa pra ele beber, [um chá], Pedrinho vomitou e ficou melhor. A avó-mãe perguntou: 'O que você tem , Pedrinho? E, ele: 'Tomando DDT, querendo morrer. É que minha família toda é convertida a Santa Cruz e eu não quero'."

Belém dos Solimões, quando Márcia Kambeba ainda brincava por suas ruas de terra sem se preocupar com roupas ou racismo, tinha uma divisão marcante. Uma ponte separava os católicos e os seguidores de uma seita cristã conduzida por um missionário de nome Irmão José, conhecida como Ordem de Santa Cruz.

"Ele andava carregando uma cruz nas costas por todo canto onde passava, com uma túnica igual a de Jesus, barba que batia na barriga, cabelo no ombro e uma faixa no tórax escrita Santa Cruz" relembra Márcia que emenda: "Foi o período em que os ticuna mais se mataram, mais se envenenaram. Porque quando uma família indígena se convertia para o Irmão José, ela tinha que mudar todo seu comportamento. E os jovens não queriam. Então eles tomavam DDT".

Entre as proibições impostas por Irmão José (que morreu em 1982, mas foi sucedido por dois pregadores rivais), estava a abolição da "festa da moça nova", em que os ticuna celebram a primeira menstruação das jovens indígenas e o consumo do pajuarú - bebida alcoólica à base de mandioca.

Kambeba, que foi noviça e frequentou a pastoral da juventude, procura, hoje, alertar os "parentes" que se convertem à religião evangélica: "Pastor não pode exigir 'deixa de falar sua língua', 'deixa de bater seu maracá [chocalho usado em rituais indígenas]', sabe? Hoje eu consigo descolonizar a religião que quer catequizar nossa cultura", diz ela. "Eu pesquiso o sagrado", explica Márcia que diz ainda frequentar missas, "mas falo dos encantados na posição de indígena mesmo, não só de pesquisadora. Não tenho vergonha de dizer que muito do que escrevo não sou eu que escreve, mas sai como eu estivesse em um transe. Muito do que eu falo é como se várias pessoas estivessem falando no meu ouvido. Quando eu fiz a prova do meu mestrado foi como se várias vozes estivessem conversando comigo. E eu fui segundo lugar na prova. O sagrado está em você saber usar ervas, em vocês respeitar o valor de um maracá, em você entender o som de um tambor que te conecta com o coração da terra".