Ilegais no Brasil, praias 'particulares' podem ser liberadas
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A mesma comunidade científica que já alertava sobre o risco de enchentes no Rio Grande do Sul agora pressiona pela necessidade urgente de adaptação urbana frente às mudanças climáticas - mas uma série de leis no Congresso brasileiro vai na contramão.
Quando falamos em adaptação, parte importante é a preservação da vegetação natural próxima a rios, costas e mares. A mata ciliar serve como uma primeira barreira a enchentes, aumentando a permeabilidade do solo e evitando a erosão, da mesma forma que mangues e restingas na zona costeira ajudam a conter ressacas marinhas.
Mas nada disso parece ser considerado por 25 projetos de lei e três PECs (propostas de emenda à Constituição) que afetam desde o Código Florestal e o licenciamento ambiental até nosso direito de pegar uma prainha no final de semana.
No meio do 'novo' Pacote da Destruição, como foi apelidado por ambientalistas, uma PEC (03/2022) parece propor uma simples transferência de título dos chamados terrenos de marinha - mas abre brecha até para a privatização de praias.
Os terrenos de marinha são todas as áreas situadas na zona costeira, margens de rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés, como manguezais e ilhas costeiras e oceânicas. O padrão para seu estabelecimento vem de mais de 200 anos atrás, quando o então Império se preocupava com a defesa do território nacional frente a eventuais invasões externas (por isso o nome de marinha).
Hoje, ainda que muitas vezes tais locais já estejam ocupados por imóveis particulares, legalmente estas áreas ainda são propriedade da União. Nestes casos, os proprietários possuem apenas o direito ao uso, além de pagarem um imposto extra por estarem em um terreno público.
O padrão para estabelecimento dos terrenos de marinha de fato é obsoleto e precisa ser revisto, mas a PEC usa isso para propor a transferência dessas terras do governo federal para seus ocupantes diretos ou estados e municípios. Na prática, abre-se uma brecha para privatizar, edificar, degradar, aterrar ou simplesmente sumir com essas áreas.
Há o risco da criação de praias particulares, e especialistas indicam até a existência de interesses ligados aos jogos de azar na proposta. Hoje, como as praias são da União, é ilegal impedir o acesso a qualquer praia, independente do que "aquele resort" te diga. Mas muito além da perda de espaços democráticos para nosso lazer e cultura, podemos perder nossa proteção costeira.
A PEC traria efeitos sérios também na Amazônia. No Pará, por exemplo, a influência das marés, que define os terrenos de marinha, segue pelo rio Amazonas, adentra por vários rios e alcança o Tapajós. São enormes extensões de mangues e igarapés em risco.
A proposta, que já foi aprovada na Câmara dos Deputados e tem audiência pública marcada para esta segunda-feira (27), é uma ameaça séria à nossa capacidade de defesa do território. Não mais pelo risco de possíveis invasores externos como no século 19, mas sim a um dos principais sistemas de proteção da zona costeira contra enchentes, ressacas, subida do nível do mar e erosão costeira.
Em um cenário de emergência climática, privatizar nossa linha de frente é, no mínimo, antiestratégico.
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