Beatriz Mattiuzzo

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Opinião

Pela primeira vez, criamos mais pescado do que capturamos da natureza

Estamos cultivando mais peixes e organismos marinhos do que pescando - é o que mostra o novo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Lançado a cada dois anos, o relatório The State of The World Fisheries and Aquaculture de 2024 traz dados, análises e projeções a nível global. Apesar de a aquicultura ter superado a pesca pela primeira vez, a organização alerta que a sobrepesca, ou pesca predatória, de estoques selvagens de peixes continua batendo recordes.

Mais de um terço das populações de peixes marinhos (chamadas de estoques) é pescada acima do nível de reposição natural apontado pela ciência. De 2022 para 2024, houve um aumento de 2,3% na sobrepesca. Na realidade, o número de espécies capturadas além do limite sustentável deve ser ainda maior, uma vez que, além da pesca ilegal, o controle do que é pescado ainda é defasado em muitos países, inclusive no Brasil - outra frente em que a FAO vem atuando.

O documento ainda reforça o chamado "Roteiro da Transformação Azul", estratégia adotada pela FAO para atender à crescente demanda global por pescado, apostando fortemente na aquicultura. Trata-se de um esforço para cumprir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 da ONU (ODS 14 - Vida na Água), que busca não só evitar a sobrepesca, mas também promover a sustentabilidade socioeconômica das populações tradicionalmente ligadas à pesca.

A aquicultura seria então a solução para todos esses problemas? Não é bem assim. Atividades em larga escala sempre trazem consigo impactos significativos, principalmente no caso da produção de animais vivos. Podemos citar o uso de químicos tóxicos para evitar doenças nos animais, a transmissão dessas doenças a peixes selvagens, a introdução de espécies exóticas e até a limitação da pesca artesanal e o tráfego intenso de embarcações gerado por uma lógica de mercado.

Assim como há cenários diversos dentro da agropecuária em terra, o mesmo acontece no mar - com a principal diferença de que a humanidade, de maneira geral, tem muito menos séculos de experiência acumulada na criação de organismos na água. Se, de um lado, temos enormes fazendas de salmão no Chile, onde a espécie é exótica, há também alternativas muito mais sustentáveis.

Moluscos filtradores como ostras, vieiras e mexilhões, por exemplo, não só não precisam ser alimentados com rações e afins, como também prestam um serviço ambiental: diversos estudos mostram que, ao se alimentarem de partículas suspensas como plâncton, matéria orgânica e sedimentos, esses animais contribuem para manter uma melhor qualidade da água.

Cultivar espécies nativas e em menor escala, ou em sistemas multitróficos que combinem diferentes animais aquáticos complementares em um único sistema, também pode ser uma ótima saída. Trata-se de uma solução baseada na natureza, onde os resíduos de uma espécie servem como nutrientes para outra.

O relatório da FAO salienta não só a importância de buscarmos alternativas mais sustentáveis, mas também separa a pesca industrial da pesca em pequena escala, sustento único de cerca de 53 milhões de pessoas no mundo. A pesca em menor escala emprega 90% dos trabalhadores do setor e contribui com 40% de todo o pescado - ou seja, na pesca industrial temos apenas 10% da força de trabalho e mais da metade de todo o pescado, reproduzindo um cenário capitalista bem conhecido onde os recursos naturais do planeta vão para as mãos de poucos.

Por fim, o documento ainda salienta o impacto das mudanças climáticas no cenário da pesca, que deve levar a uma diminuição da biomassa de peixes, chegando a 30% menos peixes até o fim do século no pior caso.

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Enquanto frutos do mar são cada vez mais divulgados como alternativas melhores para nosso prato, precisamos pensar em como desenvolver essa nova frente de modo a promover uma verdadeira transformação azul, buscando justiça socioambiental, e não apenas replicando no mar nossos erros em terra.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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