Energia (nada) limpa: PL das eólicas inclui jabuti pró-combustíveis fósseis
O futuro depende de energia limpa e até o mercado já entendeu isso - ou será que não? Fontes de energia renováveis como solar e eólica têm atraído cada vez mais atenção de investidores, nacionais e estrangeiros. Prova disso são os inúmeros projetos em processo de licenciamento abertos para eólicas offshore (no mar) junto ao Ibama. Somados, os parques teriam potencial para gerar mais de 220 GigaWatts de potência ou "15 Itaipus" , segundo os dados divulgados pelo último relatório do Ibama no início deste mês.
A própria sobreposição entre as diversas áreas com pedido de licenciamento, contudo, mostra que as coisas não estão lá muito organizadas. Foi nesse sentido que surgiu o Projeto de Lei 576/2021, apelidado de PL das eólicas, para regulamentar a implantação de usinas eólicas no oceano brasileiro. Mas a boa iniciativa agora corre o risco de facilitar mais degradação e injustiças socioambientais, como alertam o Painel Mar e o Grupo de Trabalho do Mar da Frente Parlamentar Ambientalista.
Originária no Senado, a proposta recebeu uma série de alterações em sua passagem pela Câmara dos Deputados, como a inclusão de medidas que ampliam as regulamentações para além da energia eólica. Na prática, abre-se brecha para ampliar o uso de combustíveis fósseis, como carvão e gás natural, a partir de termelétricas, por exemplo. No jargão político, são os "jabutis": medidas sem relação com o tema principal da proposta que são incluídas no texto.
Fomentar o carvão e o gás é fazer mais do mesmo e promover fontes fósseis altamente poluentes, o que vai diretamente na contramão das ações globais de descarbonização e enfrentamento da crise climática. Esse incentivo perpetua a dependência de recursos que contribuem significativamente para o aumento da temperatura do planeta e a degradação socioambiental.
Gerenciar empreendimentos no mar é sempre desafiador e, por isso, para uma boa gestão, especialistas orientam que o PL das eólicas reforce o uso do chamado PEM (Planejamento Espacial Marinho). Trata-se de uma ferramenta multissetorial que busca organizar o uso compartilhado do oceano pelos diversos setores, da pesca ao porto, do setor de óleo e gás ao turismo.
O PEM faz com que questões ligadas ao mar deixem de ser tratadas de forma separada pelos diversos atores e busca concentrar e cruzar as informações dos diferentes setores, gerenciar áreas de conflitos e oportunidades. A ferramenta, muito necessária em um país com mais de 8 mil quilômetros de costa, já vem sendo desenvolvida no Sul e Sudeste do país, e até 2029 deve ser concluída.
Longe demais para esperar? Pode parecer um tanto distante, mas vale lembrar que a instalação de usinas eólicas também não é nada rápida. Se na fase de licenciamento ambiental os empreendimentos já mostram grande sobreposição entre si, é de se imaginar que a sobreposição com outras atividades também será intensa, potencializando conflitos. Assim, utilizar o PEM como pré-requisito obrigatório na lei para a instalação de parques eólicos pode proteger tanto os ecossistemas marinhos-costeiros quanto às comunidades costeiras que dependem do mar.
Além disso, temos a mania de olhar o oceano aparentemente desértico e achar que ninguém utiliza aquela área, desconsiderando comunidades tradicionais para as quais o mar é fonte de sobrevivência. A instalação de turbinas eólicas no mar acarreta na exclusão de áreas de produção pesqueira em um raio de 500 metros no entorno de cada estrutura, de acordo com a Convemar (Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar). Alteram-se as rotas de pesca e a dinâmica costeira, mudanças especialmente importantes para embarcações à vela presentes no litoral do Nordeste brasileiro.
No Brasil, os projetos de geração eólica offshore muitas vezes estão alinhados com o desenvolvimento da cadeia do hidrogênio verde, visando criar uma alternativa sustentável em larga escala aos combustíveis fósseis. Portanto, são projetos voltados para a exportação, gerando ônus para a nossa biodiversidade e recursos pesqueiros, sem assegurar que a produção de energia renovável tenha impacto na descarbonização da economia regional e garanta a soberania energética.
Em um cenário de emergência climática, a transição energética é essencial, mas é preciso cuidado para não achar que estamos avançando e permitir mais uso de combustíveis fósseis para "financiar" a transição, ou promover maiores injustiças socioambientais. Afinal, quão limpa é a energia se ela só promover mais exclusão e desigualdade para aqueles que estão na linha de frente dos territórios?
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