Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Viver, ser feliz ou pagar o preço?
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"Você está com Covid porque foi ao carnaval!", foi o que me disse a funcionária ao telefone, direto e reto. Não era isso que eu esperava ouvir, porque estava falando com um profissional qualificado da área da saúde do maior hospital da América Latina, e havia já entre o carnaval e eu vários dias. É como se a pessoa dissesse: "Você pecou, então este é o salário do pecador, você vai arder no mármore do inferno até ser salvo", nem desdenhei, nem temi, segundo meu analista, carrego um corpo quase inútil, uma esponja que atrai tudo o que não presta pra natureza e para dentro de si é rico em tudo quanto é tipo de fungos e protozoários, cuja única vantagem é ser guardado por uma cabeça fantástica trabalhada por Exu, adornada por Zambi, voacenta como Yansã, e mergulhada na poesia e na magia de um bom forró e uma farra. É maravilhoso crer nisto e conhecer o mundo à minha volta, e se não fosse Covid, caso não contagia para ruim, eu nem estaria aqui escrevendo este texto, estaria na Aparelha Luzia curtindo farafina.
Desta forma, posso entender a emoção de que só vai do labor a reza ou finge que vai, esperando alguma benesse que não seja trocados, muita encheção de saco e doentes. Sei do que estou falando, sou aposentada desta mesma enfermagem, e perdi a função renal assim, deixando de cuidar de mim pra cuidar da humanidade. Minha bisa diria assim: Na nuvem que virá buscar os justos se num vai. Bisa me ameaçou a infância inteira de nunca ir na nuvem dela, tadinha, achava que só porque era branca já tinha passaporte garantido. Mas até pra ter onde viver ficou difícil, porque foi rejeitada em vida por sua família branca, e veio morar conosco. Eu já desconfiava que esta nuvem é composta de tudo o que não gosto, beatas, monitores de sala, diretores, segurança, chefias meia boca e puxa sacos em geral, rapa de feira e muitos aí cristãos de boa vontade. Já uma pessoa de bom senso não diria assim, uma pessoa que tem um diploma a zelar diz de outra maneira, e só não impede a gente de entrar no hospital porque sabe que não tem este poder e que eu sei que ela não, não é revestida deste poder, porque toda divindade é justa.
- Venha ao hospital amanhã às 15h para realizar o exame e aguardar o resultado pela internet.
- Mas eu comprei o teste e fiz em casa, deu positivo.
- Então traga o teste para confirmação.
Mais uma vez a insensatez paira no ar da comunicação.
- Andar pela cidade com um material contaminado, não é colocar em risco toda a população por onde eu devo passar? Que tal se eu mandar uma foto?
Após momentos de silêncio, eu levei a foto, este é o cenário atual que vivemos.
Agora resta saber o que comer nestes casos, como se eu, comilona que sou, não soubesse. Recebi canja de minha mãe e de Tiana que estão mais próximas. Fiquei bem indefesa, isso tem lado bom e não muito bom, coisa boa é a doença que tira as ferezas da gente e a gente só aceita, nem repara, nem põe gosto ruim, só agradece. Mas este estado não pode ser frequente, a gente precisa recuperar as forças e voltar a ser o que se é. E o mundo que bote reparo e me ame ou me odeie por eu ser isso que sou, não demora e volto abrir a porta da minha gaiola e soltar meus passarinhos coloridos, pra raiva de quem quer o mundo cinza, sangrento, esfomeado e triste. Todos! Nem um diabinho restará preso, eu só fico boazinha se ficar doente, finjo-me obediente e aí consigo fazer par com a humanidade alheia. A estatística chama isso de adaptação, a religião chama de conformação, eu chamo de possibilidade ou única alternativa.
Segundo Gaiarsa, um amigo, a sociedade existe para ser vivida, e em qualquer sociedade, seja religioso, empresarial ou matrimonial, cada pessoa precisa abrir mão de algumas coisas para a articulação vingar, seguir e não morrer na praia. Na prática é assim; Na forma mais crua, eu mato metade de mim e você mata metade de você, aí sim podemos formar um grupo, e seremos então uma poderosa multidão de meias pessoas, todas guardando em si sonhos profundos queridos inocentes. É um procedimento trágico e terrível, mas normal, só há um pequeno erro na história, a própria história do ódio humano, o que a gente esconde não morre nem desaparece. Fica aí, dolorido e deformado, como uma sede, um pouco de sede leva-me a procurar água, muita sede pode levar-me ao assassinato ou mesmo ao delírio. O que fazer com o porão, cada vez mais cheio de coisas estranhas, que seguem crescendo sem parar? Fofoca, é claro.
Quase tudo o que é falado soa como verdade, mas verdade mesmo está para dentro e na expressão com que olhamos, ali mora a verdade dos fatos, aquela que muda o mundo, nem sempre pra melhor, ao contrário do que pensamos, o que move o sentimento da maioria das pessoas é sim o despeito, a inveja e a impotência, que dorme tranquila em seu berço esplendido. Mas deixa pra lá, Gaiarsa foi um analista amado e odiado por muitos por chegar tão perto do fogo da verdade. O que é, afinal, mentira e verdade nesta minha caminhada, se minha realidade é confusa e eu mal sei o que devo comer. Levanto-me e recorro a um jornalista, um marqueteiro, um político ou ao nutricionismo coisificado pra saber qual nutriente me cai bem, qual dieta me alimenta. E estes vão se orientar com o capital que sua religião indicar, não pra me orientar, mas pra me deixar ciente que cada verdade tem vários lados, juízes e condutas sérias a ser obedecidas neste nosso mundo loteado por deuses e demônios e que ele ou ela ali detêm a chave. Repito a orientação: O que comer nestes casos?
Como pude chegar a tal disparate se sou onívoro e sempre comi tudo o que bem quis. De bulbo de capim, gordura a pequenos preás e fisális e marias pretinhas, e penso que foi aí que peguei imunidade e venci a desnutrição, assim fiquei fora das estatísticas de morte prematura estabelecida pelo governo. Eu sou sobrevivente, eu sou o povo real desta nação, por isso festejo. Quem vive de caricatura nunca saberá o que é isso, eu vim pra vencer a estatística. E sobrevivendo, qual lado devo escolher? Tenho certeza de que foi por causa de muita manga verde com sal, goiaba com bicho, muita mexerica que a gente tomava das cobras verdes que viviam na árvore e nos mandruvás dos abacateiros. Ah o abacateiro! Árvore frondosa que dava ao mesmo tempo alimento e recreação, e era preciso tomar cuidado porque a vida era perigosa. Meu amigo Polaco caiu do galho numa brincadeira e morreu no dia seguinte, uma perda memorável, tanto que em mim nunca morreu de todo, e hoje também me serve de alimento pra enriquecer a vida. Todos os mortos seguem conosco, assim sendo, a pergunta que não me deixa calar é: De onde vem a comida? O que eu como me traz saúde? Tem quem passe fome? A semente é importante? Você que lê agora tem fome de quê? Me desculpe entrar assim no espírito da sua intimidade, do que você se alimenta para tornar sua vida melhor?
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