Topo

Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Conta de rendera, caminhos de boiadeiro

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

14/08/2022 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Pelas lágrimas divinas
livrai nos dos invejosos,
dos laços dos criminosos e dos desígnios de satanás.
Mama, me salva,
a escrita me escapou.

Quero escrever e não consigo. O que será que se deu comigo?
Um amigo disse que chamar pela Mãe, pelas mulheres da casa do panteão é muito mais sagrado, traz mais significado que qualquer oração. Então, lá vai:

Valei-me, mama Xica Mixirica,
destranca minha cancela.

Quem chama pela mãe nunca erra.
Pronto! Posso entrar?

Chamei a até minha onça caetana, meus alebrijes para ajudar, já que o movimento armorial me guarda. Até Ariano Suassuna veio me amparar.

Valei-me santidade maior da imoralidade, a escrita não tem idade .
Me ajude porque se eu não tiver assunto, vou ter que inventar .
Não abafe meu caminho, saia da minha reta contrário.
Pelos votos do lunário de cortez,
meta-se nos ocos dos fundos dos teus infernos

Me deixe. Eu vou escrever outra vez .

Fiz renda, aboiei feito vaqueiro, cisquei e voltei para o mesmo lugar.
Será o frio, a autoestima, a idade ou a solidão? Depressão talvez, falta de namorado, problemas, boleto atrasado, eleição…Estou lisa de imaginação e apago tudo o que escrevo. Será que entrarei em extinção? Será o fim do mundo, da passagem de minha tigresa sobre as letras? Será a culpa de quem?

Eu já juntei as contas, já rezei a novena e nada nem ninguém me acode. O frio está de rachar. Até pra Boiadeiro eu já apelei, porque ele anda com Sultão da Mata, que pertence a minha lei. Armada e sacramentada, eu vou seguir o rumo e pegar o trecho devagarinho, como anda um carro de boi. O ranger da roda canta e as pedras fazem caminho.
Escrever é um ato solitário e eu sigo devagarinho. Capim, gordura entre os dentes e sigo rente, contente. Só paro quando chegar.

Pronto. Estou pronta. Já vai começar.

— Mas, mulé, quanta indecisão! Bote o riscado no pano.

— Deite a palavra "absolvição''. Ou escreve ou não escreve. Ou desenvolve ou deixa a ideia de lado.

Escrita é renda no bordado, não é fuleragem não! Tá pensando o quê?

Dia desses, esqueci o celular carregando no carro e fiquei sem saber o que fazer. Meu mundo caiu. Foram duas horas sem contato com ninguém, eu pensei que iria o mundo se findar. Tentei ligar pra alguém pra avisar, minha cabeça estava lisa como um ovo por fora. Eu quase morro de tédio, sabia? Olhava pela janela as árvores, o prédio, tudo sem sair do lugar, eles satisfeitos e eu incompleta. Até o revoar de um passarinho me causou inveja. Uma lesma fininha passava deixando a gosminha fina na superfície e ria de mim. Eu vi o riso dela. Que perigo minha cabeça esvaziada, que cilada! Como foi que deixei um celular fazer isso comigo? Não lembrava o número de ninguém, para onde havia ido toda informação que guardei outrora? Fiquei tão assustada com a gaiola vazia, que cheguei em casa, peguei uma caderneta e escrevi letra por letra, o número e nome de quem eu reconhecia. Estava lá a informação.

A internet limpou minha cabeça, que baixaria!

Justo eu, contadora de história com mais de 50 anos retidos na memória, se eu esquecer a história do meu Ataliba, o que será de mim? Quem desenharia o povo atalibano no mapa sezefrediano militar, quem? Posso até me ignorar, deixar de falar comigo, mas sem memória não vivo. E o futuro, como vai ser? Porque eu, que arranjei celular ontem, hoje tudo já dei pra esquecer, imagina quem ganha o aparelho junto com as fraldas. Dizem que tem escola por aí que nem lápis e papel usa mais.

Essa memória artificial, será que presta? Será que vai ser de confiança, igual a groselha que a gente tomava do saquinho Q’Gostoso. Nunca confiei nessas ousadias do futuro, não sei por que deixei o povo me iludir com este negócio de redes e modernidades. Eu nem tenho traquejo pra ter tanto amigo assim. Mas que teve prevenção, teve sim. Mãe dizia e a gente não queria ouvir, que tava chegando um negócio no mundo que ela ouviu dizer lá na feira. Disse que os estudos iam mudar de tal maneira, que quem não estudasse direito nem de lixeiro ia poder trabalhar. Mas pra gente, correr junto do lixeiro era até divertido, esperar ele jogar a lata de volta e vir chutando ela de novo, até chegar no portão.

O que será que mãe estava por inventar? O lixo era pouco, ainda não existia tanto plástico. Assim, era uma lata por cada casa e vários meninos para correr atrás da lata de lixo. Emprego talvez nem faltasse. A gente só comprava o pão que vinha embrulhado em papel de seda, o resto era a granel e tinha que levar vasilha. O óleo era na bomba, cerveja com troca de casco, leite troca de garrafinha. A seda era pra fazer pipa, nem podia amassar. Se o mundo não tivesse evoluído e inventado o lixão, o ofício de catador teria se acabado. Tem gente que fala que na Austrália ser gari é tradição, coisa nobre, cultura que passa de pai para filho. As pessoas adoram contar coisas de lugares que a gente nunca foi. Depreciam nossa luta e dizer que lá onde vivem os delirantes é que é bom e sustentável.

Cada casa tinha sua própria lata de lixo e, até a lata era coisa difícil, tinha que correr atrás do caminhão pra não perder a lata de vista. Usava-se a lata até ela se acabar mesmo.

E nem precisava de mais trabalho a semana já estava arranjada. Segunda era folga da mãe, ninguém ia na rua, ninguém ia em casa, rebanhar jamais.

Terça, olho no peixe, olho no gato. Dia de carrocinha passar, de olho no neguinho pra ele num rodar nas mãos do homem do caminhão, que laçava cachorro pelo pescoço e levava pra fazer sabão. Aquele que era pego, nunca mais voltava, sem absolvição.

Quarta, olho na lata de lixo.

Quinta, tinha que tomar cuidado. O homem da carrocinha enganava, às vezes era de quinta que ele vinha e neguinho ficava avisado.

Agora, pode esquecer, cheguei no assunto que gosto. Sempre fui uma legítima cuidadora e guardiã dos rebanhos de cachorros.Na nossa rua, um cachorro era amigo do cachorro do nosso amigo, onde um tava o outro ia também. Quando chegava agosto, que era mês de vacina, a gente juntava tudo e levava pra vacinar. Tinha uns que ficavam tão brabos, tinha que segurar igualzinho seguravam a gente. E a gente consolava, dizendo que a lapada era pra ele melhorar, sendo que ele nem tava doente. A gente contava pra eles a mesma mentira que contavam pra gente. Na volta, por privilégio, a gente tirava a coleira e deixava que eles andassem por onde quisessem andar. Entravam no mato, corriam atrás de preá e iam de uma ponta a outra, de repente apareciam. A gente seguia, cata aqui, cata acolá, quando a gente resolvia ir pra casa, era só assobiar.

Já falei de santo, reza, celular, cachorro, memória e coisas tais. Estou flutuando, não espere concordância ou rima. Hoje não tem início, meio e nem fim.

Nem renda por inteiro, nem aboio de vaqueiro
Não tem outro jeito
Vai ter que ser assim .

A gente ouvia o sapo cantando, lá na lagoa. Oi,oi ,oi, oh, que coisa boa. O pirilampo passa com as bundinha acesa, entra pra dentro dos matos e se apaga. Até as lagartas tinham luz de néon nas costas. O olhar dos gatos de noite tinha lume. No jardim da casa de Xica, as dálias davam perfume. De noite assombração, o rameleiro e o medo do tinhoso do Homem do Saco de Pecado. Fim do mundo, não existia vazio e solidão. Não sei o que assustava mãe, pois pelo o que vejo, de comunicação a gente já entendia. De renda, boiada e destino a gente entendia. Ver o feijão crescer, os peixes nadar, fazer flauta de bambu, prego no chinelo. Memórias de um certo canavial que nunca morre.

Dona Antônia sempre dizia: "Sabe, Maria, nóiz é tudo ignorante das letra, mas da vida nóiz é letrada. Criada no cabo da enxada, herdei dos meus pais a sabedoria. O aço, a terra, o tecido, o trigo, a árvore,as folhas nos pedem respeito para penetrar o sagrado da gente mesmo".

Talvez eu morra sem ensinar tudo o que aprendi, mas o amor e a festa, estes eu divido antes de morrer. Pego nas agulhas e inicio este bordado com o que aprendi sobre meu passado. A arte é minha arma, meu avesso bordado, um pano guardado dobrado e cheio de memória. Toda tarde, debaixo da sombra do abacateiro, tudo se findava. Faca na mão descascando cana, veio mastigando pra vida alegrar. Chupar cana e ouvir história.

Presta atenção na prosa, não tira o zoio da linha senão desanda! Ninguém gosta de tecelagem mal feita, cheia de faia. A garapa da cana é boa. Espia como ela deixa a gente feliz, enquanto a roupa quara.

As crianças mastigam o bago, o caldo desce braço afora, se mistura com a poeira e chega no cotovelo já vermelho pra marrom, não mais verde. E assim se devolve pra terra. Quem cuida da terra nunca erra.

Para deixá- los pra trás, Exu na frente. Paz na guia, minha mama agora iluminai-me na hora que vem raiando o dia. Se a gente votar direito, este mundo fica melhor e a gente nem sofre mais. Salve a renda, o boi e os boiadeiros. As crianças vêm primeiro.

Axé