Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O futuro a quem pertencerá?
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Olhando a vida vivida
A questão me passou
Fui eu quem fiz minha vida?
Ou fez-me a vida o que sou?
Sou inteligente e percebo as ocasiões?
Tenho sorte bem direcionada pelo destino ou tenho mérito?
Ou simplesmente sigo viva, escapo as armadilhas?
Sendo o futuro ancestral, posso considerá-lo meu?
Já que tive o privilégio de envelhecer, apesar das estatísticas, vivo momentos decisivos no renascimento. O velho mundo me corrói, sejam setênios ou novênios, o jogo de dados está viciado, todas as cartas marcadas. O medo marca meu ndotolo na fala das que me antecederam, pra quase todo lado que olho dou com a dúvida na parede, só meu coração e esta fala em mim repetem a sílaba: Vá! Posso ter medo, mas vou, porque preciso ir, tudo o que lutei novamente está sendo posto à prova de novo, desta forma preciso seguir pra outro lugar onde eu possa estar.
O medo é como o arco-íris, atrás dele se esconde um pote de ouro, mas e este abismo em volta? No entanto, eu sei que preciso de propósitos seguros pra continuar, o riso do meu interior nunca se valeu da hipocrisia ou de fórmulas prontas. E quem não crê no meu amor e em mim precisa passar, todas as pérolas que lapidei até agora chegaram a mim em forma de grão de areia, uma agonia, uma dor ou uma dúvida. E sempre coube a mim me remexer pra todos os lados, as pérolas não me causam alegria, todas foram lapidadas à custa de muita vontade e luta, preciso fazer este exercício pra lembrar que sou líder e cientista de ninguém mais que eu mesma. Poderia me chamar caso eu gostasse de ser CEO de mim, é fato provado por experiência feita que tudo o que eu toco cresce, fica imenso, maior que eu, mas nunca fica, sempre vai embora, se quer ligar pra saber de mim.
Caso ficassem todo este espaço que me acolhe teria ficado pequeno, mas brindar em meu nome eu brindo todo santo dia. Pois desde muito cedo disseram a minha mãe que eu não seria ninguém, não é qualquer um que suportaria ser eu e continuar vivendo, um brinde a mim! Não cheguei a esta reflexão sozinha, jamais, cada tropeço me ajudou e ajuda a concluir tudo que afirmo, toda vez que meu tapete é puxado posso até parar, mas nunca recomeço do zero, tenho base sólida e alicerce firme, sei quem sou!
Acompanhe meu raciocínio. Logo que percebi que o que eu queria fazer era quase impossível, entreguei-me ao que estava mais fácil, aos delírios da passagem de minha infância pra adolescência. Eram doces momentos de sonhar com o príncipe encantado, não, eu não ouvi sobre ele na igreja ou nas rodas de conversa ou... A TV, os contos de fada me diziam que de algum lugar meu salvador surgiria, e só eu teria o poder de reconhecer, tão forte criatura, então, em algum momento eu poderia escolher.
Dois anos haviam se passado desde que eu havia saído da escola, vários empregos. Com onze anos eu trabalhei com brinquedos na Papelaria da Glória, era bom ter brinquedos nas mãos, eu entrava 8 horas da manhã e saía 23 horas, mas eu tinha brinquedos, não eram meus, mas eu os tinha nas mãos. Já havia experimentado assédio, violências várias, descaso, já havia andado feito andarilha pela Estação da Luz me perguntando por que eu ainda não tinha um livro. Eu ainda era uma criança, embora já tivesse carteira de trabalho e trabalho, eu só não podia gerir a minha vida. A gota d'água se deu quando meu irmão morreu, ali morreu em mim a vontade de esperar o tal dia de ser feliz, decidi que faria a mim mesma feliz. Como meu pai, meu irmão morreu antes de sua filha nascer. O choro que é livre e às vezes consola, a depressão que sempre chega.
Eu tinha a meu favor tudo o que ainda não sabia, e a vida já havia me sido tão amarga, eu já havia perdido tanto, a sorte é que meu espírito infantil, meu Erê que eu chamo Nico sempre me animava para as peraltices. Foi então que resolvi experimentar a vida sexual, resolvi afrontar os adultos a minha vista fazendo algo que eles nem imaginavam que eu pudesse estar a fazer, mas deduziam, já que só jogavam indiretas sobre coisas que eu nem sabia, porém também deduzia. Sem informação, sem prática, sem saber por que foi assim que tudo aconteceu. Eu tinha coragem e ignorância, força, raiva, vontade de conhecer, e alguém disposto a participar da minha experiência, nem preciso dizer que na primeira experiencia, primeira gravidez. Primeira lição aprendida na prática, fique longe do que não conhece. O que era uma experiência mudou todo giro da minha vida, e eu troquei os sonhos pela realidade, era verdade a menstruação, sumiu e minha barriga cresceu.
Mas não era uma realidade qualquer, ao dar à luz a primeira filha eu me tornei mãe. Poderia pôr em prática duas coisas, garantia as roupas dela, ela teve os mais belos casacos e sapatinhos que eu pude fazer, afinal, era minha bonequinha e manequim. Segunda, era impossível ganhar dinheiro fazendo tricô ou crochê, minha mãe tinha razão, era um labor lindo e lento, mas não põe comida na mesa. Casa que não tem pão todo mundo briga e ninguém tem razão, esta é uma lição que não tem volta, o recurso é caminhar pra frente, mas sem informação, sem política pública, é difícil. Por isso, sem emprego, o jeito foi ficar morando no mesmo quintal, minha filha mudou minha vida, eu agora tinha por quem lutar, eu não permitiria que fizessem a ela o que fizeram a mim, eu viveria por ela. Tão miudinha, cabia na palma da minha mão, tão espertinha, tão faceira, andou e falou tão rápido que nem parecia uma criança prematura. De repente eu era só, de repente eu tinha um tesouro nos braços, uma obra de arte parida por mim. A maternidade mudou meu olhar sobre minha comunidade, eu trabalhava na fábrica de bolacha, pessoas que eu considerava ruim, agora pegavam meu bebê no colo, alimentavam ela, faziam gracejos, sorriam e faziam ela sorrir, e davam sopa e papinha de maçã.
- Vou te ensinar como se faz uma sopinha.
- Uma batata, um pé de frango, uma cenoura.
- Cozinhe tudo bem molinho e aperte bem com um garfo, passe na peneirinha e pronto, um fio de sal, óleo e dê a ela.
Minha mãe segurava minha filha com tanto orgulho, sem sorrir, porém, orgulhosa.
Troquei a receita de crochê por esta sopa. E que dificuldade que era dar comida a criança, eu botava na boquinha dela ela jogava para fora. As saias me diziam: "paciência". Será que eram mesmo tão ruins assim? Agora eu que nem ia mais a igreja corri logo para marcar batizado, era o círculo da vida dando seu giro, pela fé era bem pouco, era mais pela festa. Uma criança batizando outra criança, vivendo a vida numa região que pouco se ouvia falar de contracepção e vendo ao meu redor todas as mulheres carregadas de crianças, segui o destino. Tive mais quatro filhos, segui o exemplo. A única pessoa que tinha apenas um filho aqui no Ataliba era Dona Maura, minha madrinha, e eu ouvi muito as pessoas dizerem que ela era marcada por Deus, que não teria quem lhe segurasse a alça do caixão. Assim como as pessoas que eram deficientes visuais ou de locomoção ou... Que pensamento horrível este! E só entendi a necessidade de educação familiar e controle de natalidade quando voltei a estudar já viúva e com 26 anos.
A tecelagem ficou pra trás, era impossível viver dela ou tecer pra minha própria prole, tive que encarar o exército de reserva. É sabido que tudo o que a gente abre mão e é importante, nem morre, nem deixa de existir. E a tecelagem era importante pra mim, era filha também, o sonho seguia pra dentro de mim, me visitando a todo momento, meu herói sempre perguntava: "Quando vais ter tempo pra sua real vontade, lembra que você prometeu se fazer feliz?". Eu respondia que seria quando as crianças crescessem, quando ganhasse dinheiro, quando fosse feliz, quando envelhecesse, quando?
A demora no acaso em me permitir realizar tais sonhos possibilitou que eu estudasse a vida e adoecesse um tanto, trouxesse vícios como álcool e calmantes pra acalentar a solidão e a impotência e fosse aos poucos debilitando a saúde mental. E me perdesse por ela, pela vida procurando respostas, olhando a vida pelos cantos e quase perdendo o encanto. Só o que me encantava agora eram aqueles a quem eu mais amo e aos quais eu podia dar tão pouco, quase nada. Medo de nunca lhe dar nem uma casinha nossa pra morar me corroía por dentro, a fala de minha mãe sobre minha bisa assombrava meu ndotolo: "a bisa só nos visita porque não tem onde morar e ninguém quer ela por perto". Será que eu teria o mesmo destino que minha bisa? Será que iria pra mesma igreja? Seria quem amaldiçoaria o povo colorido da ponte? Infelizmente este tempo chegou também, a ponto de crer que gostar de tambor atrasava minha vida, eu aceitei o cabresto. Ia a igreja, tomava calmantes, embriagava. É uma das formas de viver num país sem políticas públicas.
A fé cega, supri o que falta, um pecador não precisa de três refeições por dia. Feliz, hoje digo que é uma grande verdade que o destino conduz aqueles que o aceitam e arrasta os que oferecem resistência. As igrejas que frequentei foram verdadeiras escolas pra mim, eu entendi ali que o sofrimento é geral e as pessoas têm medo de ficar pior que já estão, querem crer, mas antes querem participar da boa vida que o líder tem. O segredo é dinheiro de todos em prol de uma única causa a do líder, e um bom discurso, o mistério tá posto, todo milagre é encontrado por um homem santo em algum canto, e todos comungam as tais horas, seis, doze, dezoito, vinte e quatro, o resto é arte, traquejo e...
Eu vivi tempestades e arrastões com raios e trovões que aplaquei com as armas que tinha reza, promessa e choro. E se não cheguei aos entorpecentes e calmantes proibidos não foi porque não quis, foi porque a providência me impediu, porque drogas custam dinheiro e eu investia todo meu ganhame numa droga chamada comida, roupa, sapato, transporte e saúde. E a última esperança? sair daquele buraco.
A madrugada me enlouquecia e eu bebia, eu queria ver meus filhos bem, mesmo ali naquele barraquinho de alvenaria mal construído, de telha furada, com rato pra todo lado, eu sonhava, e o sonho permitia que eu não caísse mais. Perdi a conta de tanta gente que perdi na noite escura em que procurando o último golpe ou o último trago quedaram na overdose. Viagens infindáveis a cemitérios pra enterrar vizinhos, será que a morte visitaria minha casa? Foi assim que fui reproduzindo em casa os costumes que aprendi com minha mãe, a juventude a céu aberto não é terreno pra se caminhar sozinho. Aos 33 anos cai doente, achei que fosse morrer, mas era mais um recomeço.
Conheci a diáspora aos 40 anos, descobri que nunca precisei religar. Ali, a realidade se abriu pra mim eu conheci a África, ela existia. Então, tudo o que acontecia comigo era porque sou negra, fui apresentada à lei 10639.
Sete noites de conflito se dissiparam
Sete perguntas sem resposta se responderam
Sete portas fechadas se justificaram
Sete caminhos interrompidos, clarearam
Sete sentenças marcadas, foram entendidas
Sete desculpas dadas, foram desmentidas
Sete silêncios a volta, ganharam luz
Eu pertenço a uma nação perseguida, eu sou a academia de mim em mim, eu sinto, logo, resisto.
Como quase ninguém me dá ouvidos, escrevo e agradeço, pois até mesmo a palavra já me foi negada e por um período bem longo. Eu sou uma árvore em meio a uma floresta, tenho instinto de fera de tigresa de unhas afiadas e íris cor escura. Terrena, capricorniana, movida pela ventania e regida pelo Senhor Sultão das Matas, com o pé na terra, fui parida e criada por Dona Maria (Xica Mixirica). Convivo bem com meu silêncio, sou seletiva, mas às vezes me sinto só, o espírito criador das deusas paira sobre mim, não tente me entender, nem eu consigo, eu mudei minha vida por amor, meus filhos foram minha escola, e graças a eles eu realizaria meus sonhos, ajudaria mais gente e devolveria ao mundo e a minha comunidade o que gastaram comigo em afeto e em bem viver.
EIS QUE TEMPOS DEPOIS EU ME ENCONTRO AQUI REALIZANDO MEUS SONHOS, AO CONTRÁRIO DO QUE DISSERAM, MAIS UM PORTAL SE ABRE PRA EU SEGUIR.
Quarenta e quatro anos depois, pra inveja da academia que nunca me aceitou, eu agradeço. Porque de tudo o que sei, um tanto nasceu comigo, outro tanto aprendi e ainda outro tanto um monte de gente do bem conseguiu entrar nessa academia e salvar nossos saberes, e um deles é este homem imenso que volta pra o Orun hoje, Emanoel Araújo. Ele conseguiu furar a bolha acadêmica para libertar o saber e me fazer entender o que são saberes nossos. Eu não sou descendente de escravos, descendo de pessoas livres de reis e rainhas que foram escravizadas. Eu, formada em desenvolvimento humano, resisto, graças ao processo civilizatório ancestral, o que teria sido de mim se Oxalá não tivesse me dado o poder de parir. E tenho certeza de que ele teria me dado outras pessoas pra que eu pudesse potencializar, eu sou foda e tudo o que eu toco cresce, fica imenso, maior que eu. E sigo parindo soluções, porque o futuro é gerido por quem tem coragem e afeto, e pra isso, sempre vou precisar romper com ciclos que não me cabem mais.
Em memória das centenas de mulheres que não resistiram, eu me levanto! Podem me chamar semianalfabeta ou iletrada, eu me vejo como alguém que sobreviveu a injustiça e a pobreza. Eu sou a memória viva do Jardim Ataliba Leonel.
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