Topo

Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nico: O lendário menino escutador

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

18/09/2022 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Tem um pingo debaixo da pia
Debaixo da pia tem um pingo

Esta lorota foi ontem, pegue a visão e flutue na ideia. O mundo é inventivo e eu pertenço a uma linhagem de pessoas reais que criam soluções, até para o que ainda vai existir, tipo unir um pirilampo com uma abelha pra ter mel e luz tudo junto. Pode ser uma grande mentira, mas seria bom se existisse, assim são as coisas do sobrenatural e do inexistente. Eu fui um grande pequeno fechadureiro que correu o risco de perder um olho só para arriscar uma novidade, só pra ter algumas informações a mais, para engordar os pontos cegos da própria imaginação.

Sempre fui um moleque, sempre foram os Erês de viagem em mim potencializando-me para a viagem chamada futuro, "Exu acertou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje". Mas as passagens secretas eu lembro, depois do derradeiro agosto, resolvi de propósito puxar esta brasa pra minha sardinha, setembro ainda não se meiou de todo, ainda é antes da metade, depois eu volto para as tristezas, já que elas nunca cansam de voltar, setembro pode ainda trazer rastro da calda de alguma onça caetana perdida. Agosto, venta, é imenso e tem um quê lendário onde brota histórias na manga ou por detrás de algum armário. Pode ser lenda urbana, folclore, e tudo pra gente é vida.

Não fomos nós que inventamos lugares de trancar a arte como museus e academias, nossa arte é nossa expressão maior de vida é o sopro do Deus que vive em nós, são utilitários diários pra nós mesmos, não somos caricatos, somos a cara da nossa nação, por isto vivemos intensamente o real desde miúdos. As assombrações, agouros, simpatias, contrários e contendas, rezas, são artes também, a arte do maldito e do bem contado são temperos e boticas que damos aos visitantes de nossas almas, como presente pra usarem do jeito que quiserem, já que dentro de nós é lotado. Coisas que a gente jura que viu ou que tem certeza de que alguém viveu. Assombra nossas noites e caminhadas solitárias enquanto esperamos calar a raiva da mãe ou ela guardar o chinelo. Por algum bem entendido, faz trepidar o coração e torna voltar pra o mesmo lugar quando volta a calmaria, quem nunca esperançou ou entristeceu com uma história de trancoso? Minha criança era um grande moleque que guarda minha coragem, eu o nomeio Nico, sempre valente, sem ter medo de nada ou fingindo não medrar. Hoje, eu, como toda gente grande, sou uma grande besta, sei de nada, Nico arriscava.

De repente, a gente se via ali, reunidos pra contar fatos, meu moleque, outros como eu e alguns grandes fingindo força nas pernas, ou porque anoitecia. Depois quando chegou energia era por falta dela, a morte de alguém, ou nascimento. Um fato que só hoje dei conta que nas horas de medo a gente gostava de ficar junto, toda vez que a razão falta o chão escapa a gente busca nunca estar só. A agonia estica, fica muito grande se a gente não arrebanhar com alguém. Assim, querendo gastar a vida cheia de aventura, a gente gastava tempo contando histórias, cada um tinha a sua, igual, diferente ou mesmo confirmava presença na de algum fato curioso. Na escola, lavando banheiro, eu ouvia histórias como a da loira com algodão na boca. Nico não era leigo, minha criança era muito esperta, cansou de ver sua mãe e outras mulheres encher a boca de gente morta com algodão, ainda bem pequeno tinha função de achar um dono de reza, tinha imaginação fértil:
- Será que alguma pessoa morta sentia falta de ar e saiu por aí pedindo ajuda?
E pra dentro dele ele sempre se perguntou o porquê?
- E se a pessoa sentir sede no caminho até tirar todo aquele algodão? Por que não deixar ali do ladinho da rede? E se a pessoa quiser vai beliscando a seu gosto, por toda viagem.

Diziam que a morte é pra sempre e pra sempre deve de ser longe, e tem a transição, a sala de espera entre inferno e céu, entende? Demora. Entenda que a mulher do banheiro com um algodão na boca não era um acaso, Nico já defendia esta ideia de não algodão, tinha tempo que a loira sumia e aparecia, o bebê diabo. O nascido falava palavra feia e cuspia fogo em qualquer lugar, mm bebê iluminado de verdade, dava medo de voltar pra casa sozinho, principalmente porque a casa de Nico era a primeira da rua de manhã, na volta era a última. Era cada arrepio que dava, ainda bem que naquele tempo o portão era de taramela, fosse cadeado e chave o medo seria maior. Pense no frio escorrendo pela coluna, não somente em agosto, mas pelo ano inteiro, porque assombração nem era história contadas apenas em agosto. Tinha a mula sem cabeça, que era o corpo de uma mulher que batia na mãe e foi castigada, tinha a mãe que morreu atrás da porta porque alguém esqueceu o chinelo virado de bruços, tinha raios, trovões e tempestades. Mas no escuro também se brincava, a gente brincava com a luz da vela acesa, surgiam imagens na parede das sombras das nossas mãos, a mãe ouvia música que saia da vitrolinha sonata.

A voz saia de algum lugar e canalizava por ali, a folhagem do quintal de bananeira ou da cana ganhava vida, era mal-assombrada de noite, de dia não era. A bisa trazia sempre a história do Rameleiro, um homem enorme que atravessava a fechadura e carregando um balde imenso cheio de uma gosma chamada ramela, e passava na cara de quem mentia e acordava tarde. Isto afligia Nico, porque ele já via sombras que falavam com ele toda noite, para Nico aquele homem existia mesmo, aí ele acordava muito cedo sentindo cheiro de fumaça de café, e todo vivente sabe, se não sabe saberá agora, que a fumaça é alma do ancestral que desce à terra pra viver entre sua comunidade. Nico não sabia, mas intuía, e pregava uma peça no tal Rameleiro, se assustava até com as mentiras dos irmãos mais velhos que diziam que ele tinha sido retirado de uma lata de lixo, ele contava pra mãe que desmentia, mas a verdade dos irmãos era mais forte, mãe ralhava com a bisa por causa de histórias, muitas vezes ela alimentava o fantasma que Nico construiu, alimentava a alma do escritor, deixando que ele ficasse ali olhando ela. Dava-lhe um ovo de gema molinha com pão pra ele comer enquanto via ela alimentar as galinhas, e ainda por cima, ouvir o rádio tocando Luiz Gonzaga, e contava-lhe coisas da infância dela, luzes que ela via dentro do poço quando tinha o tamanho de Nico, e se tudo isso fosse pouco ainda tinha o fantasma estendido. A mulher da ponte que crescia e caia, que o padrasto contava, e Nico sabia que o encanto era verdade, a voz falava com ele:
- Vá lá, marque na memória pra contar um dia.
Um dia para ele era o dia seguinte, nunca Nico imaginou que fosse no futuro como faz agora, num momento em que sua infância é tão questionável. A mulher freira dizia que se a gente visse uma vela acesa no meio da noite era pra rezar um pai nosso e perguntar o que ela queria, Deus o livre, e se acaso ela respondesse? Nico foi uma criança solitária, solta no mundo, perdida em suas criações e amparado por seu espírito milenar. Se imaginasse que este futuro traria competidores reais como televisão, internet, boletos vencidos, assédio, desejabilidades inatingíveis que só eram possíveis em sonhos, teria sonhado menos, com certeza. Talvez tivesse enterrado as histórias principais com seus detalhes, Nico viveu derradeiros tempos de união familiar.

De noite todos os gatos são pardos e tem uma luz maravilhosa nos olhos
Um olhar de vidro
De noite o neon das taturanas acende
O pio das corujas se destaca
E a bundinha dos pirilampos marcam caminhos
Viram lanternas e vão a frente
Seguindo o coaxar dos sapos
E a euforia só acabava quando a mãe dizia
Vá lavar estes pés imundos Seu Dorme Sujo
Medo e fantasia marcaram minhas esperanças

E mesmo quando alguém perguntava: "O que você quer ser quando crescer?", ele queria ser um herói, fazer uma fechadura maior pra o Rameleiro, dar um banquinho pra mulher da ponte, um pote pra loira, um inferno pra o bebê diferente, uma bengala pra bisa, dinheiro pra minha mãe, ferramentas pra o padrasto. Nico seria um solucionador de casos, inclusive daquele pingo debaixo da pia que mãe sempre reclamava. Desde que não fosse agosto, porque o saci na escola virava medo de criança negra, foram pra escola e viraram apelidos horríveis. E aquele homem que criou o Sítio do Pica Pau nunca deve ter feito um boneco de sabugo de milho ou de caroço de manga, nunca viu que é as crianças que pertence a este universo do brincar. Eu mesma, hoje, já não vivo mais a história como vivi naquele tempo, no entanto agosto ou a vida me assusta, na dúvida, eu como bom adulto covarde, espero setembro chegar, no meio das flores eu tenho mais coragem. Quem me dera hoje assustar só com o maldito ou o contrário, a vida é de longe muito mais assustativa.

Depois eu cresci, meu herói empacou, eu fui trabalhar no IML colocando algodão nas pessoas mortas, quem diria? Depois fui viajar, você acredita que no avião tem uma almofada que se cair no mar flutua? Nunca ouvi dizer que algum vivente enviveceu porque caiu no mar com um enfeite deste. Tá cheio de água lá embaixo e eu não vim aqui pra nadar, alguém tem notícia de algum vivente que dê conta que só sobreviveu por causa desta almofada? Diz aí por favor, é urgente.