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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É preciso pelo menos seis mãos para torcer um cobertor

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

02/10/2022 06h00

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- Esta noite João me amou do jeitinho que eu mereço, como se eu era uma princesa.
- Tenho raiva de quem fala tudo errado, não é "eu era" que se diz é "como se eu fosse" - Retruca a estudada - Então quando era com você, você diz assim!
- O home é meu, eu que sei como foi, ora essa!

Hoje o palavrório começa quente, meu papel aqui era o de jogar água na fervura para acalmar os ânimos. Se tudo corresse morro acima perderíamos de uma só vez quatro mãos na hora de torcer um cobertor, uma colcha de chenille, um tapete, ali ninguém estava pra brincadeira. A mina pode se dizer que era nossa rota de comércio, nossa escola, nossa igreja, nosso consultório sentimental, e o nosso lugar de desabafar e sair no sopapo, caso ninguém interferisse. Ali não era lugar de brincadeira, só eu pensei que fosse, às vezes a pessoa está surrando um jeans com tanto empenho que era melhor deixar ela desabafar com o pano, o mais que poderia acontecer era o pano rasgar, mas isto a costureira resolvia. Já de outra vez a pessoa botava o pano para quarar lá no gramado e ficava lá ociosa, parada, sem querer conversa com ninguém. A mais véia dizia:
- Deixa ela com silêncio dela, o juízo dela tá cozinhando galo. Carne de galo é dura, todo mundo sabe.

Antes de casar eu era apartada destas contendas, mas eu me casei, então emancipei, deixei de ser moça descalça e nada mais era mantido em segredo pra mim, até então, pra eu lavar roupa na mina era divertido. Eu tive que esquecer o tempo bom e entender a lida, e eu nem digo por que o varal caiu lotado de roupa branca, limpinha, na terra vermelha, ou porque faltou anil, ou porque cheguei tarde e não encontrava espaço. Eu confrontava agora com a realidade, tinha 15 anos e duas filhas.

Amanheceu, o sol se levantou cedinho lá pras bandas do Fontalis. Jardim Fontalis, nome de fonte, lugar sagrado, terras que pertenceram ao senhor do ocidente, ele a cercou e foi ao mundo cercando mais terras. Depois, pessoas expulsas por ele, de algum lugar no mundo, ocuparam esta região pertinho do Ataliba. Antigamente eu ia com minha bisa pegar mercadorias que os donos de mercado jogavam ali, mas, nos anos 1970, lá só moravam os pássaros, esquilos, eucaliptos e uma ou outra família que a gente visitava quando paria, chamados meeiros ou arrendatários. Eu já disse isto noutro lugar, a água na mina corria a larga gelada, farta, ela era adornada com belos azulejos com uma santa desenhada, a Santa Luzia. O que me fazia perguntar a mim mesma "Quem usou esta fonte quando a gente nem existia?", já pensava isso quando passava ali com a bisa.

Agora, eu havia me casado e fui viver a aventura de ganhar dinheiro fazendo o que aprendi com a minha comunidade, quem chegava cedo marcava os primeiros lugares, igualzinho quando meu Nico marcava o campo de jogar burca, passarinho que não deve nada a ninguém já acorda feliz. Passarinho nunca tem infelicidade na vida, tá sempre cantando, a gente acha. Pra enfeitar o cenário só faltava nóiz, a mulherada e seus rebentos, para lavar a própria roupa ou a roupa de alguma madame. Agora eu estava ali experimentando aquele labor como ganha pão, outrora eu era assistente, eu carregava a cestinha de pregador pra qualquer mulher que pedisse, enquanto não pedisse eu corria pra o meio do bambuzal, rolava na grama, e mais tarde, depois do almoço, chupava cana que uma delas descascava, e eu pensava que quando eu crescesse trabalharia lavando roupa na mina, era praticamente um dos meus sonhos. Quando via a mãe cantar passando ferro em brasa na roupa que ela tinha lavado eu pensava antes de dormir: "Quero ser isto, olha como ela canta". Queria até mesmo a vitrolinha que ela ouvia Nelson Gonçalves, só nunca desejei o ferro em brasa, ele já bem cedo não me imprimia simpatia, tudo que eu via as mulheres fazerem sorrindo eu queria ser. Eu gostava do sorriso delas, elas eram melhores sorrindo, mas agora eu morava bem longe da nossa mina que era da divisa de uma outra ponte lá no Jardim Joamar, onde a gente passava para lavar os pés e beber água depois das aulas, bem antes de inventarem as garrafas de plástico.

Havia migrado pra dez minutos a frente do Ataliba para desbravar outro mundo, e cem anos pra trás devido ao atraso do lugar que era desprovido de infraestrutura, lembra que eu disse que mãe me avisou e eu por paixão e instinto descuidado de o que seria liberdade, não quis ouvir. A paixão bem dizer agora passada a limpo é uma desgraça se nenhum dos lados tiver como abastecer o campo frágil da necessidade, tivesse ouvido, não teria feito a travessia. Eu bem que poderia ter dormido ou acordado sem essa, mas agora estava feito e eu sou orgulhosa, não sou de recuar, já que havia entrado na dança, teria que ver no que ia dar, isto é o que acontece com quem anda com príncipe, mas ali outras mulheres me adotariam, me permitiriam entrar em seus meios.

Eu me casei no ano seguinte que minha irmã se casou, a festa se repetiu, mas eu não tinha enxoval. Não tive tempo de juntar porque eu gastava com aquilo que mais me interessava, bolinha de gude, pipa, pião e coisas que pudessem me tornar líder de rua. Não foi fácil pra minha mãe amealhar algumas peças aqui e ali com minhas irmãs, elas cederam de leve pressão, mas deixe elas pra lá. Elas me cuidavam o tempo todo, sou caçula, levaria um tempo pra eu entender sobre cuidado e retribuição de cuidado, tinha quem fosse ali por solidão como dona Raimunda, ela se fazia patroa. Ia na mina pra bater papo e esnobar da gente, nós a chamávamos de camarão porque tinha a pele branca e no sol ficava vermelha, era um tipo de vingança nossa. Ela e o marido tinham situação econômica diferente da nossa porque cercaram terras a mais e venderam, no restante éramos iguais, o que uma comia as outras comiam também.

Meu sogro, Seu Marciano, fez o mesmo, mas gastou com cachaça, outras pessoas cercaram só um pedaço pra fazer o seu barraco, depois se arrependeram, mas já era tarde. Raimunda era beata das ruins, cuidava da casa dos padres lá na Vila Zilda, o padre Raimundo e os novos padres eram cuidados por ela, tem muita água que já passou por debaixo desta ponte, lá ela era subserviente, conosco era ciumenta e vingativa. Casada com seu Zete que era ignorante e raivoso, era violento e covarde, então espancava Raimunda, porque não sabia como bater em um outro homem, era importante ter uma boa camaradagem na mina porque a roupa bem torcida fica mais leve.
A gente morava no topo do morro, subir era inevitável, subir com peso era melhor evitar, quem chegava bem cedo em dias de sol voltava pra casa com a roupa seca até. Mas este texto nem é sobre roupa, é sobre conversa e cuidado.

Dona Cida era uma mulher negra muito cuidadosa com todas nós mais jovens, e além de trabalhar como faxineira em várias casas, ela lavava roupa na mina e preparava suas filhas pra substituí-la nas casas das patroas. Enquanto suas filhas ainda eram pequenas, ela arranjava serviço pra quem quisesse. Era comum que cada mulher fosse apelidada com algo do marido, o marido dela não trabalhava e vivia envolvido em bagunça, por isso era chamada de Cida Bagunça, imagine alguém que trabalha de domingo a domingo era chefe da casa e em contrapartida tinha a alcunha de ser bagunça, que sobrenome cruel pra uma mulher como ela. Tinham muitos filhos, e o danado ainda tinha filhos com outra mulher que também lavava roupa ali na mina. Às vezes ela desabafava e a gente emprestava os ouvidos, aquilo era uma lição de solidariedade, estou falando de Dona Cida dando como exemplo a vida dela que bem medido e bem pesado era a nossa vida. A mina também era lugar de conforto e cuidado tanto para esposas e não esposas, todas estavam no mesmo barco furado.

A dita casada com seu Zé Carlos tinha muitos filhos, além de acabar de criar os irmãos e irmãs que ela foi trazendo do Sertão da Bahia, Tereza de Seu Alcidez a mesma coisa. Já Dona Alzira nem enxergava mais, era uma de nossas benzedeiras, me ensinou o significado do amém, eu era muito triste e os médicos diziam que era DNV, distúrbio neurovegetativo, outros diziam que era falta do que fazer, as pessoas gostavam de me diagnosticar, minha sogra me levou até Dona Alzira pra benzer pra ver se eu melhorava, toda vez que ela me benzia e eu achava que ela já tinha acabado eu levantava e saia, ela não enxergava mas sentia meu vulto saindo:
- Fala amém sem assunto! Fala amém pra findar, pra firmar e não ficar mal com Deus.

Dona Alzira era mãe de Nana, um homem que se casou com Isabel e teve com ela muitos filhos, no dia em que ele fugiu do Fontalis nós cuidávamos de arranjar dinheiro pra enterrar a caçula dele. Anos depois, nesta caravana de cuidados, a gente socorreu um filho do mesmo Nana que já havia ido embora com outra mulher mais jovem, era um homem insatisfeito com as mulheres, exigente. Quantas gerações de mulheres e filhos de Nana passaram ali naquela mina, minha sogra, Dona Inês, parteira benzedeira dali e do Ataliba e de onde fosse chamada, foi comprada por Seu Marciano, meu sogro, lá no Sertão da Paraíba, era saco de pancadas dele, tiveram vários filhos, foi morta por ele no ano seguinte ao meu casamento, e foi absolvido pela comunidade:
- Ele batia nela porque ela bebia.
- Acho que era o contrário, ela bebia pra suportar a presença dele.

Dona Inês me chamava de louca só porque eu ameacei jogar óleo quente no ouvido do filho dela, meu marido, meu sogro também cobrava de Miguel:
- Você precisa bater na sua mulher porque a mãe dela não ensinou ela ser esposa.
Lembrando que quando eu conheci Miguel ele não morava na casa dos pais, havia fugido da casa dos pais porque apanhava demais do pai e do irmão mais velho que provocou o óbito de sete filhos, o rei em doação de filhos que teve com mulheres que lavavam roupa ali naquela mina.

Frequentei a mina até quando mãe soube do fato, mãe não me deixava aprender sozinha, sempre surgia. Eu fugi dali quando soube que ela foi me procurar, fui trabalhar no lixão. No final tive que cruzar com ela porque peguei piolho, acho que de algum urubu, tinha muitos lá, ela e minhas irmãs passaram uma manhã cuidando de minha cabeça.

Tinha já uns tempos que eu havia saído da casa dela dizendo que só voltaria quando ficasse rica, aqui o assunto nem é sobre a mina, a gente não dá valor pelas coisas que Deus dá e corre a larga, o fato é que a mina não sai de minha memória por que foi um aprendizado pra mim, eu deixei minha mãe me tirar dele, ela conseguiu um barraquinho e eu fui morar, depois Miguel brigou e eu perdi o barraquinho, voltei pra o mesmo quarto escuro e violento. Isto me fez aprender o verdadeiro significado da palavra amém, toda vez que eu vou mudar de lugar eu preciso lembrar que há tempos era preciso de pelo menos quatro pessoas pra torcer um cobertor, e isto se chama cuidado, e quem cuida precisa ser cuidado, entender o valor verdadeiro de retribuir e dizer axé ou muito obrigado. Nem sei quantas mãos foram necessárias pra me resgatar daquele buraco e estar aqui hoje.