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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Existe um momento de confronto entre vida e poesia?

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

16/10/2022 06h00

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O espelho me disse
Você é quem deve salvar-se
Já que se considera digna de ser salva
Valha-se do que pensa
Pois se assim sentes assim o é
Acenda essa chama
Olhe pra trás sim
E valha-se de tudo o que aprendeu
O futuro é ancestral porque é sobre seguir reproduzir e doar

Dona Jacira
Pra Yaci Ira 2022
Suba a sua montanha
Potencialize as almas
Pra nunca estar só

Com este pensamento viajei pela memória porque eu precisava sentir que em algum lugar deste universo alguém gostasse de mim do jeito que eu sou. Não teria sido uma viagem de desenganos somente até ali, mirando o espelho do nome que minha mãe me deu. O reconheci como escudo que me protegeu de tanto, mas não de pessoas, eu precisava encontrar a folha certa, eu precisava desta pessoa ali naquele momento com uma certa urgência, mas como se pesquisa amor em tempos modernos nas novelas onde os amores valem milhões? Nos contos de fadas onde tudo sela-se com um beijo e surge um final feliz? Isto eu já havia feito, inclusive coroados pelos meus caminhos abusadores como meu príncipe. Amores que surgiram de fricção e espumas ao vento, porque mentiram pra mim, sobre esta realeza mentirosa e preguiçosa. Não perceberam que encheram meu ndotolo de nadas e fantasias desnecessárias, no entanto, eu fiz a viagem e cheguei aonde poderia ter havido sim um amor despretensioso com o fogo real.

Eu errei, mas voltei, várias vezes ao ponto onde meu ego me enganou, viajei pelo olfato, Exu abriu os caminhos de minhas narinas, e o cheiro do café sendo passado no coador de pano, o preto passado no saco como diziam, me lembrou a convivência de casa, que fora tão confusa e que dela eu quis sair e nunca mais voltar, sem conseguir sair. O tempo deu voltas e voltas comigo em torno de meu próprio umbigo e me deixou ali no mesmo lugar, no larguinho da Rua Lucas Alaman 2C, no portão da casa de mãe. Se ainda existe amor e se algum dia ele existiu, deve estar aqui, onde está guardada a alma de minha criança. Não fui sozinha, a imagem de Salloma Salomão, meu orientador sobre mim mesma naquela época, foi comigo, ele achou meu bordado bom, mas um tanto europeu, devia ser por parte de pai talvez. O fato era que ele estava certo, ali entre os cheiros de manjericão, arroz refogando, feijão sendo temperado, e o cheiro de manga verde com sal eram inéditos, mas aquele cheiro de preto passado no saco era irresistível, mesmo pra mim que não tomava café, naquele tempo, foi dali que eu saí.

Eu tinha contas pra acertar, é da lei da natureza que a dívida siga com o devedor, até que ele pague, resquícios de religiões mil onde busquei amor, sem conseguir, porém encontrei algumas frases de efeito que faziam sentido, não era ali ainda que meu príncipe se apresentaria a mim, eu ainda buscaria mais. Eu escreveria o livro eu o lançaria, escrever um livro relatando minha passagem pela aquela rua e me apresentou ao pequeno Nico, o moleque que vive em mim, meu Erê. E ele se sentiu curado e agradecido por ter sido reconhecido, ele foi a razão de eu nunca ter desistido, eu sou meu primeiro filho e o meu príncipe. Chegaria este momento em que eu perceberia que ninguém além de mim mesma poderia defender com garras e dentes as minhas convicções.

Sim, eu lavei banheiros por cinco anos, mas na época eu não lavei por causa da covardia das mulheres daquela escola ou daquela igreja, lavei porque estavam sujos e eu sabia como deixá-los limpos, não era eu que estava errada, mas foi ali que eu descobri que não quereria fazer aquilo pra sempre, entretanto eu nunca disse a ninguém que não gostava, deveria ter dito que queria escrever e pintar e cantar, deveria, mas não disse. Deixei que as pessoas criassem expectativas sobre o que seria bom pra mim, sim, os saberes e fazeres os ditos cuidados, são passíveis de escravizar e trazer invisibilidade e uma pobreza patológica. Caso um dia o escravizado caia na real, que viagem, senhoras e senhores que viagem.

Até o ranger da roda dos carros de boi eram saudosistas ali, mastigar o galhinho de capim gordura andando pela Sezefredo Fagundes, molhar os pés no fio frio de água das minas, comer banana madura e docinha, andar a pé é poético, andar só é solitário, muitas vezes necessário. Caminhar em grupo é preciso se quer chegar mais longe, mas a vida é escolha e o grupo não me contempla. Todavia, andei só e ao mesmo tempo com a cabeça cheia de rebanhos de palavras, eu sou a pastora das vozes em mim. Comecei a ordenar assim minha vida desde que conheci um grande amigo, Fernando Pessoa, foi a pessoa quem me aconselhou também: "Volta pra casa". Descobri que como pessoa também sou várias, mas só o meu príncipe poderia salvar-me de mim mesma. Ispia o que o espelho me disse:

Eros e psique

Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
Onde só a despertaria
Um infante que viria
De além dos muros da estrada

Fernando Pessoa

Muito prazer, eu sou a princesa citada acima, a Negrinha, a Russa, a Caçula, o Xodó de Minha Mãe. A meu ver, Fernando Pessoa andava de conversas com Exu e sabia de mim, pois atirou pedras poéticas certeiras a esmo, que até hoje estão a atingir o que ele viu e o que imaginou, e que me fez parir bem cedo algo muito grande. O gosto pelas cores, pelo canto, pelos desenhos, pelo vento, pela natureza, pelos perfumes e pelos jardins de temperos. Nele nada era a mais pra mim, nem insetos nem a flora ou a fauna, só não sabia pra que servia, eu de espírito repleto deste alimento o imaginei parte de mim e nunca achei que o perderia. Já que estava comigo sem que eu o invocasse. E nem imaginava que um dia contaria aqui o que contava as paredes, as galinhas, aos cães, a grama aos gatos, e a quem perdesse tempo em me ouvir. Boa de artes, boa de ouvido, mas muito introspectiva, sondava bem o terreno que queria atingir e muitas vezes, por um comentário ou outro, desistia do meu objetivo, assim fui deixando o melhor de mim para trás, pensando que não era bem o que seu grupo desejava que ela fosse, mas sabia ser feliz com pouco e sua felicidade era amanhecer e viver o tempo que a vida dava e, se necessário fosse, alguém ali salvaria o melhor de mim e pronto. Então empinar pipa, jogar burca, colocar pião pra rodar ou jogar taco, era um bom passatempo coletivo, e todo o resto era só luz pra dentro de mim, minha lanterna.

Ele tinha que tentado
Vencer o mal e o bem
Antes que já libertado
Deixasse o caminho errado
Por o que a princesa vem

Fernando Pessoa

Sim, as rédeas da vida vão encurtando conforme a gente cresce, a estrada estreita e nos conduz a caminhar, não para o lado que salve os sonhos e sim pra o lado prático
Mantem-se o corpo vivo, para o salvador encontrá-lo intacto talvez ou quase. Assim eu seguia tendo em mente um filho enorme pra sustentar.

A princesa adormecida
Se espera, dormindo espera
Sonha em morte a sua vida
E orna-lhe a fronte esquecida
Verde, uma grinalda de hera

Fernando Pessoa

Lembro toda vez que precisava benzer de sol e sereno, doença de quem vive na roça ou na feira debaixo do sol do meio-dia e de chuva, eu saia sem dizer amém, não sabia que a palavra tinha maior importância além de dar fim ao ritual da missa ou culto, Dona Alzira me chamava de sonsa, bela adormecida, e na maioria das vezes, sem assunto. Não sabia ela que, na verdade, eu tinha outra vida guardada dentro de mim, cheia de vozes e personagens que eu precisava guardar. O rebanho sempre se espalha ao vento, e precisava que eles se calassem vez ou outra, pra eu ouvir quem estava falando do lado de fora, eu já tinha um grande filho pra sustentar em segredo e aguardava um salvador que viria de bem longe que estava a caminho.

Longe o infante, esforçado
Sem saber que intuito tem
Rompe o caminho fadado
Ele dela ignorado
Ela para ele ninguém

Fernando Pessoa

Sem nome, sem lenço e nem documento, sem nem entender as regras de jogos de rua, promessas feitas aos santos ou as santas de peito bonito. Ele chegaria na data certa, com endereço certo, com amor garantido. Tinha ele um segredo comigo, só ele poderia entender-me, ali na roda do poço ou na escola ninguém era capaz, ninguém.


Mas cada um cumpre o destino
Ela dormindo encantada
Ele buscando a sem tino
Pelo processo divino
Que faz surgir a estrada

Fernando Pessoa

O destino conduz aqueles que o aceitam, e arrasta aquele que oferece resistência, surgiu em minha vida um namorado, eu entendi como príncipe, vieram assim cinco filhos. E o filho mais velho ficou ali largado esperando ser lembrado, Nico ficou ali no larguinho por muitos anos até que eu, por amor, fui resgatá-lo, e o príncipe que surgiu era mais outro filho.

E se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora
E falso, ele vem seguro
E, vencendo estrada e muro
Chega onde em sonho ela mora

Fernando Pessoa

Pra selar um trato ou um contrato é preciso que cada uma das partes abra mão de coisas que só ele julgue importante. Foi assim que meu primeiro filho foi trancado no armário do meu subconsciente, deixado ali pra viver só, pra ficar lá junto com todos os meus brinquedos de rua e de sonho. Era o que o mundo julgava desnecessário, durante um tempo da minha vida corrida eu fui feliz, os filhos ocuparam o lugar de minha vida que precisava ser preenchido e eu os considerei todos um só príncipe, que vieram pra me salvar. Salvar de quê mesmo?

E, inda tonto do que houvera,
A cabeça em maresia
Ergue a mão e encontra a hera
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia

Fernando Pessoa

O filho mais velho seguia guardado para dentro de meu armário existencial e, vez ou outra, batia a porta de mim pedindo pra sair, fazendo me lembrar que eu havia prometido a ele que ele ficaria ali por algum tempo dentro do armário apertado e ele cresceu, ficou deformado pra caber ali naquele espaço tão pequeno. Os sonhos que a gente tranca no armário nem morre nem deixa de existir e vai chegar o momento em que será preciso dar voz a ele ou temperar a vida com o sal da loucura, isto também quem disse foi Fernando Pessoa. A loucura é o sal que não deixa o juízo apodrecer, foi este tempero que teve que saltar do espelho, tirar as rédeas das mãos dos meus filhos e de cada personagem sem sentido que eu escolhi pra guiar a minha vida, e se hoje estou aqui escrevendo foi porque eu reconheci a necessidade de dar voz ao filho mais velho. Eu destranquei a porta da gaiola, eu sou o meu príncipe salvador, eu cheguei, muito prazer, pode falar comigo. "Mãe sabe do que tenho saudade? Da sua comida de domingo, arroz, feijão, maionese, galinha cozida e macarronada com macarrão Aracy feito por você". Isto não foi poesia, foi vivido, aconteceu agora em setembro de 2022, estou salvando a mim mesma, é o que me resta.