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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Alguém viu a fera que morava aqui?

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

23/10/2022 06h00

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Me irrita muito quando vou a sessão de análise ou terapia, o que achar melhor, e não tenho nada a dizer, fico uma fera. No entanto, preciso ocupar o ouvido e o tempo do meu ouvidor porque estou pagando pelo horário, e olha que se fosse o contrário nem sei como seria, porque eu durmo se alguém puxar uma conversa constante comigo, capaz de roncar e babar sem dó no ombro do meu falante. Penso em como a minha vida deu passos inesperados, eu queria este dia, mas achava impossível. Alguém sentado ao pé de si mesmo me aguardando, e há de ouvir-me ainda que não queira. Ali a pessoa que me ouve é o meu servidor particular por quarenta minutos, descubro que não ter assunto pode se tornar uma grande aventura pra eu me perguntar: O que estou fazendo aqui?

E muitas vezes, ao seguir da pergunta, a resposta vem, e muitas vezes o tempo se torna pouco. Tem dias que resumo meus conflitos em dez minutos, noutros dez horas é pouco tempo, as verdadeiras conclusões sobre a sessão só virão mesmo quando eu estiver voltando pra casa, falando com o balaústre da condução ou as gárgulas do teatro municipal. Dizem que eu falo sozinha, não é verdade, eu falo comigo e me direciono a elementos que eu dou vida, falar comigo, responder minhas dúvidas é muito interessante e é uma forma de ter resposta imediata. Eu pergunto, eu respondo, eu tiro as conclusões, se precisar encerro papo comigo ou me parabenizo. Pronto, eu vim conversando comigo da estação Paraíso até Tucuruvi e não me senti só. Será que alguém notou que eu falava comigo ou...?

E não raro, aqui ou acolá, alguém me pergunta se está tudo bem ou se preciso de ajuda, ora eu quando vejo algum vivente conversando consigo não tenho dúvida que ele está bem, e penso que se acaso ele precisar de ajuda há de escalar uma terceira pessoa ali de dentro dele entre seus homônimos pra ajudar na questão. Pra ter uma ideia próxima sobre o caso, muitas são as razões do porque procuramos ajuda pra falar da gente, eu em particular sempre tive uma voz potente dentro de mim, às vezes muito minha amiga, às vezes falsa como uma nota de vinte cinco reais e certos amigos leais. Aliás, foi por desconfiança dela que aceitei falar com alguém que eu pudesse enxergar, foi ela quem que me prometeu ajuda com um maldito príncipe que viria de além, dos muros da estrada, ora deixe isto pra lá. O danado mesmo é quando o espelho diz: "O espelho sou eu também ou mora em mim"
- Acho que você não foi sincera em tal parte do assunto!
- Como assim faltei com sinceridade?
- Não usou todas as virgulas e pontos que o problema exigia, puxou bem a brasa pra o lado da sua sardinha, com todo respeito.
- Contou de um jeito, mas foi de outro jeito, lembra?
- Mas o que tem que contando eu um fato a uma terceira pessoa devo ser fiel aos fatos?
- Pra ter mais clareza de raciocínio, acender a luz na questão.
- Ora essa, e já não é de hoje que carrego eu minha própria lanterna, e me alumio por inteira, por que razão acender ainda mais luz na questão? Só quero que me deem ouvidos.
- Nem sempre eu busco opinião e sim que alguém concorde comigo, porque a meu ver eu estou certa, do contrário eu teria ficado na minha. E muitas vezes nem precisa que eu omita fatos pra realidade vir à tona.

O próprio tempo me é implacável, acompanhe meu raciocínio de quando minha fera até se queixa, mas nada pode ser feito, o tempo é implacável comigo. Dia desses, quando eu ainda ia a hemodiálise pela manhã, tive uma surpresa terrível por conta de descuido meu, eu me levantei às quatro horas da manhã e o dia já estava raiando, era setembro, parecia que eu estava em Salvador, os passarinhos todos alegres barulhentos como eu gosto, afinal era setembro, mas a manhã de setembro me enganou. Eu encontrei uma roupa bem alegre pra sair de casa, um vestido curto de alcinha, calcei uma sandalinha e lá fui eu. O carro deslizava pela Fernão Dias afora e o sol ia clareando toda Zona Norte com seu brilho, que dia pessoal, que dia! Chegando a hemodiálise, continuei acompanhando da janela os raios de luz que iam adentrando o recinto. Acho que já disse como os dias de sol me alegram, né?

A sessão acabou entre 8h30 e 9h, como era segunda-feira eu tinha sessão de análise a seguir, bem ali na Avenida Paulista no Conjunto Nacional, se não me falha a memória, vigésimo segundo andar. Lá de cima a luz do sol se tornava ainda mais bonita, a conversa se inicia e vai encorpando, eu expondo algum ponto de vista meu, o analista meneando a cabeça dando pitaco ou não. O jogo seguia em 1 a 1, de repente, uma luz escura, uma nuvem pairou sobre nós através da janela. O tempo virou, escureceu, pode? Pode. Eu senti ali o escuro da mudança de tempo, pra dentro de mim, e senti pelo figurino escolhido, porque o que até então estava nos conforme passava a ser desfavorável. Mas eu ali pensava apenas numa nova manhã sem luz do sol, olhava pra o analista que estava de calça jeans, camisa de manga longa e sapato fechado e senti inveja. Inveja porque ele saiu de casa mais tarde, porque ele não sentiria frio. Nem estava preocupado, aconteça o que acontecesse eu era só uma cliente, o frio que eu passei a sentir não influenciaria em nada o dia dele, eu poderia até morrer e a vida dele não mudaria em nada, dramas a parte o assunto mudou. Como o sol poderia ter me enganado a tal ponto? Por que eu sai de casa tão contente só porque meia dúzia de passarinhos cantavam se tenho contas a pagar e problemas reais?

Acabou a sessão, no ponto de ônibus na Avenida Augusta, eu ficaria cara a cara com a realidade, e a realidade estava gelada, fazia muito frio um vento cortante gelado passeava pelas alamedas e avenidas, sorrindo de mim. O frio que eu sentia me deixou triste, pra mim o frio tem dor, por esta razão resolvi ir de metrô, eu não gosto deste transporte, mas é rápido, lá dentro o vento não entra, mas eu não contava com uma coisa, o ar-condicionado. Naquele tempo tinha ainda poucos vagões com ar-condicionado, tinha alguns com o ar intenso, geladíssimo. Quem já foi ao Polo Norte diz que lembra bem o ambiente. Naquele dia, em todas as minhas tentativas de fugir do vento, eu encontrei um vagão de metrô com este ar-condicionado potente. Eu saia, esperava outro trem e novamente ele vinha munido de vento gelado, juro que pensei em sair da estação e comprar alguma roupa de emergência, mas eu estava com orçamento apertado, a compra não se sustentaria, não se justificaria quando a fatura chegasse, principalmente se fosse num dia de sol. O jeito foi me fazer de forte e suportar, consegui sobreviver e chegar a Santana, e qual não foi minha surpresa, quando encostou na plataforma um Cachoeira 1783 com um ar-condicionado novinho. Imagine que ali a fera em mim havia virado um gato molhado ou ainda uma franguinha solta no quintal toda encharcada, não há valentia que resista. Era a primeira remessa de ônibus saída da fábrica e eram vários, em cinquenta e tantos anos eu acostumada a ver um ônibus de manhã e outro de noite, com janela travada, calor intenso, motorista mal-humorado aumentando o calor no interior do recinto, e justo naquele dia a frota havia sido renovada só pra mim.

Eu poderia entrar em qualquer um, todos eles estavam munidos de ar-condicionado, eu sentia o risinho de canto de boca na face de cada um que achava que eu tivesse voltado sabe Exu de onde. A fera queria se alterar, mas esmorecia por causa do frio, ali cada pessoa, como meu analista, saiu de casa mais tarde, tentei justificar pra mim mesma. Estava muito frio, eu estava gelada, minha cabeça doía e era preciso evitar confusão. Havia acabado de gastar meus quarenta minutos de escuta com alguém que havia ficado pra trás, aquela segunda-feira poderia ser assunto pra próxima análise inclusive.

Chega de sofrimento, quando o ônibus chegou na Sezefredo Fagundes, resolvi saltar ali no Mercado Ourinhos e pegar um táxi, coisa difícil é conseguir que um taxista gaste ar-condicionado, mas o motorista ao me ver vestida pra verão enquanto lá fora tinha uma chuva de vento, ligou o ar-condicionado. Cheguei em casa, tomei um banho quente e entrei pra baixo das cobertas, mais tarde, já aquecida e indignada com a mudança do tempo, fui conversar com Tiana sobre o ocorrido. Incrível que naquela data eu só encontrei transporte com ar frio funcionando, sabe o que ela me disse? "Você precisa ver mais o programa sobre previsão do tempo e menos o horóscopo ou diáspora". Insolente, mas cheia de razão, e desde então pode fazer o calor que for, podem os passarinhos fazer uma sinfonia na minha janela, eu levo meia e blusa de frio e guarda-chuva na bolsa. Mas pra desencargo de consciência, mudei o horário do tratamento e vou às 16 horas. E mudei a análise pra fazer on-line por conta do isolamento da covid, mas desisti da análise porque adoro dormir ouvindo alguém falando comigo, deixei o analista falando sozinho inúmeras vezes. Ele acalma minha fera.