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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O inferno está cheio de céu, fúria e paraíso. E vice e versa

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

06/11/2022 06h00

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Uma amiga diz que minha vida não deu certo porque eu coloco o feijão por baixo do arroz, minha mãe diz que é porque eu digo o que penso, meu filho, um deles, tenho vários, que nem é o que digo, é o jeito. Mas e sobre o feijão? Ninguém diz nada, até que...

Estava morta de sono e acabou que eu dormi, sonhei, e em sonho visitei o paraíso, acho que era o céu. Ali havia uma plantação linda em inflorescência, de pés de feijão. De repente acordei, de volta a minha cama eu tinha um pé de feijão entre as mãos, e uma vida. Caramba, e então? Se me ver em situação de risco não ouse me acordar, nunca. Estou recebendo uma deusa e ela vem com um espelho e várias verdades dela que só serão minhas se eu as aceitar, se houver a mea culpa, como diz a tal matre língua castradora e universal, caso eu encontre culpa em mim neste corpinho, ai então me redimo.

Ninguém escapa de ter culpa, ela sempre vem, e digo logo que desde que me pensei escritora não foi isso o que pensei. Muitos outros sonhos gestaram em mim e de mim, mas eu tinha um pé de feijão pra cuidar. Será que entendi tudo errado? Mas meu espírito me fez errante, multidisciplinar, potencializadora, controladora ao extremo, formou-me em desenvolvimento humano, tornou-me mãe, após ato sexual é claro. Fez-me talentosa, bela, cheia de encanto e graça, astúcia. Alma alquímica, pai-d'égua, fascínio por vida boa, balada e coisas tais. Mas quando este paraíso não se faz, vem a fúria, seja no céu ou no...

Amanheceu, acordei, botei o pernil pra assar, lavei a louça, tomei meu cafezinho com meu pão de queijo de frigideira, fiz parte de minha obrigação. Agora já posso brincar de escrever que também é minha riqueza, é preciso escrever os sonhos ao invés de comprar livros com sonhos alheios, vamos caminhar pra trás no derradeiro das horas que hoje é Dia de Finados e não quero falar sobre. Sim, o destino deu-me pouca modéstia, e uma armadilha em forma de um pé de feijão pra tentar me ensinar algo na vida, e ele me persegue. Caminhei com ele por algum tempo, depois como ninguém mais se interessou além de mim e uma professora, ele me botou numa cilada de bico, porque queria reconhecimento e blá blá blá. Está tudo lá nos registros do meu livro Café.

Ainda na infância me dei o direito de sair a catar coisas pelo território me apresentar a ele, decisão que até hoje só agradeço. Jardim São João, Fontalis, Joana Darc, Vila Galvão e onde minhas pernas me levassem, e esta foi minha verdadeira sala de aula. Na outra fiquei como escrava mirim até quando a denunciei, eu sabia que algo estava errado, aquela gente nunca me enganou, eu cabulava aula e me embrenhava na mata, sem culpa, não é um conselho, porque ninguém aqui estava na pele desta que vos escreve. Depois preparei-me pra ser chefe de rua com sucesso, eu sabia organizar, gerir e mandar e me fazer obedecer, de que forma? A mesma que aprendi com os adultos da época, com violência, sem armas, como chinelos ou varas, mas com sopapos e pedradas, nomes feios. Mas muito bem mandada por minha mãe, que sempre mandou em tudo, inclusive em mim.
Eu sempre fui o xodó de mãe, eu sonhava uma coisa pra mim, mãe sonhava outra e quando eu denunciei numa composição que a escola me escravizava, elas me convidaram a sair de lá, mas eu não queria ficar mesmo. A moça disse a mãe que era chegada a hora de ir a tal casa de madame já que mãe não me sabia educar, mãe quis nem saber, nem me ouvir, deu a pilora nela, ela recolheu meus brinquedos, rebolou no mato, meteu tudo o que era de roupa e chinela numa mala e tentou me empregar numa tal casa de família. Eu não deixei ela me internar ali numa casa de desconhecidos, ela já havia feito isso comigo, quando me deu as freiras, está tudo registrado lá no Café, esta mulher também disse a mãe que ela não me educou direito. parece que estas mulheres eram as tais especialistas em educar, será?

Mãe não entendia o porque eu não queria limpar a casa das pessoas se em casa eu até fazia alguma coisa, não eu não fazia por prazer, fazia porque queria que ela me reconhecesse e porque se eu nunca fizesse a coisa ficava feia. Não gosto de limpar casa, quem disse que eu gosto, mentiu, vida que segue.

Em seguida fui visitada pelo tal príncipe salvador citado à vera em meus escritos. Não era um príncipe, era mais um filho, um marmanjo vadio, que me ajudou a parir cinco crianças, que saíram de mim e que tive que potencializar, coisa que fiz muito bem. Cuidei, como cuidava de tatuzinhos e formigas e ele, o pé de feijão, Acho que era amor ou apego, vontade de ter amigos, mandar em alguém e ser reconhecida tudo junto. E basta olhar pra ver como cresceram, ficaram enormes, maiores que eu, são meu melhor currículo, seriam estes meus companheiros pelos anos que eu teria pela frente. E como foram longos, tinha eu 13 pra 14 e recebi a primeira bonequinha pra cuidar e ela adorava concertar coisas, e ela chamou mais quatro pra rebanhar a minha vida, tivemos dias felizes, no paraíso.

O mundo me deu limão eu fiz a minha limonada, regada de muitas tardes sentada na calçada da minha rua e manhãs junto a programas de tv. Não vi Vila Sésamo, mas agora me deleitava com Show da Xuxa, era o que tinha, não posso dizer que não gostava, e mesmo assim eu ainda queria crescer. Crises de toda idade eu já tinha, e tocava a vida, com 18 anos eu já tinha três filhos, era uma adolescente que driblava e replicava as violências e as alegrias do lugar, e já experimentava os encontros de política do lugar. Eu sou culpada de meus filhos não conseguirem ser de partido de direita, eu enfiei esta brincadeira da militância na vida deles por muitos anos, já que não consegui levá-los a Disney, até que eles se foram a brincar por sua própria conta. Hoje eles se queixam de várias falhas minhas e em muitas elas estão cobertos de razão e noutras terão que discutir em suas terapias. Eu já me queixei sobre eles de quando encheram minha casa de cachorro, pra ser mais exata doze. Doze cachorras terríveis que ganharam o nome de cachorras de Jacira, como veem eu também tenho queixas. E as entrego a alguém que eu possa pagar pra me ouvir. Eu fiz de tudo pra sobrevivermos com uma certa dignidade, trabalhamos nas feiras, festas, comparando com outros vizinhos éramos ricos, pertencemos a casta de comerciantes e tivemos uma matriarca potente que nos disse: "Não venda coisas de catálogos, crie seu potencial", não com estas palavras.

Desci no meu conceito quando aceitei virar faxineira, estava em tratamento, mas desci pra melhorar, porque foi daí que tive a ideia de voltar estudar, pra desespero da minha família que acham que: "Já não vale nada, agora vai estudar, só vai piorar". E tinham razão. Enfrentei a escola racista e tomei minhas cachaças pra anestesiar a vida, eu ainda sonhava em amar e ser amada, enquanto isso eu vivia, não sei se servir de exemplo, estava em luta. Um dia a realidade nos bate a porta, passei a vida cultivando algo que nunca deu sinais de progresso, quem em sã consciência fez o mesmo que eu e hoje viu cair a ficha. Uma ideia fixa que dorme e acorda conosco dizendo: "Vem por aqui que tudo vai dar certo, o mundo está errado sobre você", meu paraíso infante sempre me disse coisas maravilhosas sobre mim.

Eu tinha um céu só meu, eu me iludi, confesso, foi meu melhor lado, é que ter um sonho que nunca se realiza deixa a gente sem dinheiro, sem oportunidade, sem amigos, entregue as baratas. Sobre amigos, tenho dedo podre pra amigos, mas tinha esperança que um dia a ideia venderia pacas. Alguém bateria a minha porta pra me fazer proposta de sucesso, entrevistar-me, saber de mim como desde tão infante recebi tal informação, talvez até me levassem a estudar o cérebro na Nasa. Ainda bem que não aconteceu, eu poderia bem ter voltado de lá com a ideia de terra plana, melhor não. Digo bater a porta, porque sou de 1964, nem telefone havia, a missiva teria que chegar pelas mãos de alguém, pra me encontrar teria que ir ao meu portão com tudo bem explicadinho tintim por tintim.

Uma vez mãe correu atrás de um vendedor de livros, só porque ele deixou um exemplar comigo, ele ficou impressionado de como eu tão miudinha soube ler umas linhas, eu não sei o porquê de tanta emoção lá nele, mas a mim foi muito bom, eu só decifrei os códigos. Mãe não gosta de livros, há neles verdades rígidas, que ferem algo lá dentro dela, foi o que pensei. Até mesmo quando a professora disse que havia em mim tal inteligência ela disse logo: "Nem adianta vir com conversa mole, não me levará nem um tostão. Daqui a pouco ela irá pra tanque e pia, como as outras. Só os meninos devem seguir estudando pra segurança da família". Mãe pagou tão caro por esta crença, chega até amansá a fera dentro dela, amansô. Arrependimento pra dez mãe ganhou sozinha, mas o destino acalmou a fera lá nela e aguçou a minha.

Ela odiava quando eu vinha mostrar meu pé de feijão a ela, ela precisava comprar muito feijão todo mês, depois fui eu que segui este caminho, precisava de pelo menos 10kg ao mês, e ia ao mercado com dinheiro contado, sabendo que não voltaria ali tão cedo, sem contar que por algum tempo ir ao mercado era um evento, um passeio ao céu das prateleiras, cheia de iguarias que eles pediam e eu às vezes consentia, às vezes nem respondia ou deixava pra dias melhores, para o futuro quem sabe. Além do que havia as despesas extras que no meu caso eram as cachorras, chegamos a ter muitas no quintal porque meus filhos eram bons samaritanos e recolhiam pra dentro de casa todo animalzinho que julgassem abandonado. Creiam-me, eu não sei porque permiti, mas permiti e por ter consentido não poderia dar fim a elas, tampouco deixá-las passar fome, conta-se aí mais 20kg de fubá pra polenta mais a carninha que as bichinha eram tudo exigente, não comiam sem mistura de jeito nenhum, nem elas nem nós. Nenhuma delas era castrada e meu quintal não tinha cerca, uma verdadeira Disneylândia, sem um pingo de disciplina a casa ficou parecendo um canil, eu mesma sou suspeita dizer, adoro criar tudo o que posso, mas sozinha, sozinha mesmo, viver, não consigo. E sem o amor sincero, o que importa a criação?

Dando voltas em volta de meu umbigo hoje me pego como uma mulher senhora, quem diria que um dia eu cresceria, foi hoje? Me arrepio quando alguém cogita dar-me um bichinho de presente.
- Pra te alegrar mulé!
- Tá louca? Eu me alegro na solidão da casa vazia, e minha carteira em paz, e no governo de voltar pra casa quando quiser.

Agora sou mãe de planta, e lembro de passagens de minha lida não mais como Nico, mas andando com ele. Preciso de coragem pra andar comigo, tem um monstro que mora dentro de mim, alojado, que ruge. Toda vez que isto acontece, no dia seguinte, algo se transforma, nem sempre pra melhor. Uma tigresa imensa maravilhosa que adora cavalgar e dar ordens, a minha criança interior que me transforma em muitas, o Nico. Há quem diga que não sei amar, depois reflito e refaço todo caminho, revejo toda estrada vivida por mim, mastigando meu galhinho de capim gordura, ouvindo a roda dos carros de boi passando cantando, vendo a serra da Cantareira passar, a pedreira bater incansavelmente três vezes ao dia e pós reflexão respondo, toda resposta demanda tempo: "Vai a merda!"

Alguns amores até cismei em pegar a criar, e todos eles comeriam arroz, feijão e mistura. O mercado leva todo amor da gente, uns deles não tive escolha tive que criar até que eles não me suportassem mais, estão por aí ao mundo. Saíram de mim e posso garantir que não tem de mim as melhores impressões, mas me guardam um certo respeito, me basta. Já de outros sinto saudade, não quero dizer que queira revivê-los.

Eu sonhei errado sobre paixão, amor e sexo, religião e capital, e me deixei escravizar de gosto e opinião por algum tempo. Por um pé de feijão, não descobri isso sozinha. Foi meu analista que acordou o danado do sonho do feijão que dormiu no algodão e cresceu. Pense aí então num arrependimento, pois anos depois a gente descobre que o dia a dia açoita a fera, ela fica mansa, cansada de percorrer sempre o mesmo caminho. Quando tem coragem tem artrite, é dos labores da fera percorrer caminhos novos, até fugindo ou fingindo escapar de seu algoz ou da dor nas costas. Quantas e quantas vezes galopando o animal desenfreado sem sair do lugar chegamos ao infinito, e tomamos atitudes inusitadas, fazendo coisas que jamais faríamos por nós mesmos, ficar adulando uma fruta que o amado ou amada sequer sabe da existência, até apodrecer, esperando, alisando, gestando até sentir que não dá mais. Venceu a natureza, e se acabou, e depois? Amada? Não, capricorniana, que redescobriu seu pé de feijão em sonho pós terapia, ou ressaca pós porre. Que nunca vai deixar de ter crises de realidade porque estou chegando aos 60 cheia de sonhos. E posso
fingir que nem era eu, desculpar-me, talvez, diminuir a taxa de carbono, ser ativista
religioso, curtir a galinha pintadinha.

Não gosto de carregar mala, quem dirá culpa. Mentiras rasas e fundas, pequenas e imensas como: "Matar a vó". A alegria de dizer não, cada um que se vire com sua culpa, remorso combina com o que? Com cachaça. Mas a loucura há de lhe visitar. Culpa materna, cada qual que se ocupe das suas culpas. Vou dormir de novo, está frio.