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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nesta encarnação eu nasci manga

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

13/11/2022 06h00

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Inicio esta missiva fazendo uma reverência às mulheres que cantaram em meus ouvidos esta música já há algum tempo atrás. Era uma época difícil, estávamos em meados do golpe militar de 1964, ano em que nasci, me desculpem se não os deixo esquecer, mas eu fui a criança modificada daquela época, escolhida pra morrer ou simplesmente vegetar, enlouquecer ou sobreviver. Filha de um pai omisso, missionário, que vivia no mundo buscando almas pra Jesus. Sim, preciso admitir, a igreja nunca trabalhou sozinha no mister de escravizar-nos, meu pai voltava a casa de ano em ano, a labuta era enorme, ele só se esqueceu de deixar um teto pra abrigar os cinco filhos que fez, da qual eu sou a quinta, que nasceu três meses depois dele falecer após contrair tuberculose e voltar pra casa pra morrer.

Minha mãe então foi despejada do lugar onde morava, uma casinha nos fundos de uma igreja famosa aí, mulheres não tinham cargos na igreja nem vínculo com falecidos maridos. O juizado de menores resolveu a questão separando todos os irmãos, enviando-os às sagradas casas que abrigavam crianças enjeitadas, este era o termo usado. Em meados dos anos 1970 minha mãe compra o terreno no Ataliba e segue a saga de construir a nossa casa.

Agradeço incansavelmente ao meio de TV que diminui a distância entre mim e a arte, o rádio depois a TV, ouvi muitas músicas entre elas as das Frenéticas, nem sei como e onde estão, mas sempre que posso encaminho uma louvação a elas. Conheci a música delas numa novela que passava na tv na hora da janta, no início aparecia na tela um pé de mulher calçando uma meia que brilhava e sandália, não, eu nunca tive a meia nem a sandália, mas tinha a possibilidade de sonhar. Pisaram no chão do meu coração e fincaram moradia e ali havia mulheres negras, então era possível um dia eu ir quem sabe cantar na TV ou no rádio. Mãe prometia me levar a cantar no Silvio Santos, ela dizia que ele chegou aqui pobre com um par de meias, vendeu aquelas meias e seguiu revendendo meias até ter um canal de TV, mãe adora ilusão. Ela também queria me levar ao Boa Noite Cinderela, acho que ela esqueceu, mas eu fui ao Boa Noite Cinderela pelas mãos da vida de muitas formas, quanta contradição.

Enfiada em religiões que tentavam matar em nós esta alegria de viver que as Frenéticas alimentavam em nós, às vezes no domingo elas passavam no Fantástico, era algo tão rápido. Estranho que naquele tempo a gente já trabalhava fora, já trazia dinheiro pra casa, ai de quem não o trouxesse, mas não podíamos dançar, ou sequer ir a bailes.

Ai que inveja que dava de uma moça na TV que era livre, ela ia num passeio com vários amigos em um jipe, um homem perguntava a ela aonde ela ia e ela dizia que iria passar o final de semana com uns amigos, e ele respondia com afeto que ela se cuidasse e se divertisse. Ela saia mundo afora com os cabelos ao vento, aí aparecia um nome de marca de cigarro. Eu fumei deste, mas cadê coragem de desafiar mãe e passar um final de semana fora com os amigos? Mas eu também não tinha amigos, nem lugar pra ir, às vezes tinha uma excursão daqui pra praia, porém eu nunca ia, só as mais velhas, me dava uma raiva, mas depois eu esquecia.

Um dia meu tio padrasto levou meus dois irmãos e eu a praia do Chora Menino à revelia de minha mãe, ele dizia que era um horror não conhecer o mar, fomos de trem saindo ali da Estação da Luz, correndo por dentro das cidades entrando e saindo de dentro de montanhas. No caminho, meu coração assobiava uma canção que eu ouvia no rádio: "e a seda azul do papel que envolve a maçã", era Caetano alimentando meu ndotolo, mas tinha ainda outra canção que eu ouvia, acho que na TV, e não sei o cantor: "Café com pão, café com pão, sobe rente na ingazeira", que vontade de cantar, e entre elas uma Rita Lee, um Belchior, um Waldick Soriano. Adoro janela, seja de trem ou ônibus, adoro viagem, ou adorava.

Foram algumas horas de observação do vasto mundo pra além de onde eu vivia. Chegando lá, o tio me faltou com respeito, abriu minha boca e me enfiou goela abaixo algo que escorregava muito, acho que era uma lesma com limão, que nojo! Não me faltou vontade de chutar a canela dele e gritar minha mãe, mas mãe nem pode saber que saímos pra tão longe, acho que ela tinha pressentimento de largar a gente perto de tanta água, medo de nos perder para o mar. Um dia um de nós foi morar no mar pra sempre, mãe quase morreu, nunca mais foi a mesma, nem festa fez mais, fez sim, a festa de meu casamento. Ainda naquela aventura mais uma vez o tio de novo...

Nos colocou a atravessar o mar numa balsa, que medo que foi atravessar o oceano sobre aquelas ripas, era muita água mesmo.

Como será que Deus fez pra fazer o mundo tão cheio de árvores, terra e água? Ninguém dizia isso em nenhum culto, mas acredito que precisa de mais de um Deus.

Depois fumei cigarro indicado pra criança, chamava Consul, tinha gosto de hortelã, depois Chanceler, Marlboro eu fumava pra sentir o que a propaganda dizia que o artefato me faria sentir. Às vezes mãe descobria algumas artes de meu tio e corria com ele de nossa casa que também era dele, ciúmes. Ele ficava uns dias fora depois voltava, e toda vez que ele voltava trazia um embrulho de papel cor de rosa cheinho de pastel de carne, e fora das vistas de mãe ele enfiava um debaixo das cobertas que eu comia em silêncio, até o último farelo.

Mãe dizia que se uma moça fosse cantar como aquelas mulheres um pai poderia mandar elas embora de casa.

Acho que meu tio sabia do Nico, porque ele o alimentava de traquinagens e sabores, toda noite ao chegar do trabalho ele passava Merthiolate nos meus machucados, ardia demais.

Antes da música das Frenéticas, as pessoas que vinham em casa não falavam com ele, só com mãe.

"Abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia", bem que eu queria, enrolava uma toalha na cabeça pra fingir cabelo e dançava na sala vazia escondido, dançar parecia pecado.

Uma vez fugi e fui sozinha ver o mar. Foi horrível, eu bebi, roubaram minhas roupas todas, voltei pra casa só de biquíni num domingo à noite, fazia um frio de cortar. Nem quero lembrar o esforço que fiz pra vir de metrô e ônibus com pouca roupa, quando cheguei em casa nem brigaram comigo, tava pago. No dia seguinte a pessoa me entregou as coisas no serviço e pediu desculpas, acha que desculpei? Qual o sentido de uma brincadeira como esta? Acho que foi por isso que fui perdendo o espírito alegre pra prestar atenção nos inimigos do caminho.

Mas nem tudo era isto, quando eu ainda estava matriculada na escola, em novembro a gente comia manga verde, muita manga, cabulávamos as aulas, íamos pra debaixo de alguma das muitas mangueiras que havia no nosso caminho, levávamos uma faquinha e sal, cada vez era um que subia no tronco pra derrubar quantas alcançasse, todos nós sabíamos como subir e descer.

E as letras das músicas delas: "É que nessa encarnação eu nasci manga

Manga madura, lá no fundo do quintal.

Cheiro bom que ficou registrado em minha memória, não lembro as pessoas, mas devia ser as irmãs Sonia e Solange e as primas delas e alguém mais.

As mangas avisavam que já era final de ano, em janeiro tinha abacate manteiga que desmanchava na boca, era bom com açúcar e limão. Vilani, minha amiga, me perguntou que cheiro tinha minha adolescência, já que a infância tinha cheiro de café, na hora eu não soube o que responder, tive que pensar de quantos cheiros e sabores é feita minha existência. Daí fui alquimizar, arranjei mangas, maracujás, abacates e os estudei como antes, da manga fiz compota, do maracujá suco, depois juntei os dois numa geléia, das cascas fiz sabonete, da essência perfume, e da poesia fiz canção.

Hoje não tem mais manga verde na minha região, elas se foram. Das frenéticas achei no Youtube pra lembrar que tive bons aromas potencializando minha geração, consegui trazer a mim os aromas daquele tempo. Agradeço por não ter ido ao Boa Noite Cinderela, programa de TV, e ter descoberto que ninguém compra uma rede de TV vendendo meia, senão minha mãe teria um canal só dela. Exu abriu meus caminhos em 2019, um sonho meu se realizou, Evandro me levou a casa de Caetano Veloso lá em Salvador, eu nem piscava e nem deixava meu coração pifar de alegria, fomos levar meu livro pra ele conhecer, ele gentilmente recebeu a mim e ao livro, meu coração ele já tem, pois sei o quanto foi generoso com meus filhos.

Exu me abriu os caminhos, por isto que agora no isolamento fiz estes sabonetes e perfumes de manga e maracujá, porque perfumam minha existência, e agradecida as muitas artistas populares que resistiram pra me ensinar também a resistir aos embates do tempo, e acho que porque nesta encarnação eu também nasci manga, mas a receita não compartilho porque é segredo.