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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O pingo pinga debaixo da pia

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

18/12/2022 06h00

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- Vixi, valha-me minha nossinhora, a tormenta se avizinha, não demora e vai chovê.
- Ispia pra nuvem que vem da serra, como vem lépida e sorrateira, parece que tá longe, mas não demora ela chega, não espere pra vê.

Não demora e o céu desaba.
Não demora vai chovê.

- Minina, panhe a roupa da corda, tire a carne seca da cerca, bote a vassoura atrás da porta que é pra mó de a tormenta ser breve e leve.
- Vai no galinheiro, panhe um ovo pra oferece a santa clara.

Pra chuva ser breve e rala.

- Ô Russa, passe pra dentro, num quero ocê cum bestage de brincá na chuva, entre!

Dia de chuva com tempestade de trovão (pixi), raio (tadau), pedra e tudo mais, o combo completo só se fecha com arco-íris.

E segundo os mistérios que padre Raimundo nunca contava tinha aquele que dizia que na ponta do arco-íris tinha um pote de ouro.

Mãe nunca que acreditava, porque ela nem ia na missa, nem jogava burca na rua que era onde as conversas se estendiam para além da sacristia.
E o sonho de uma chinelinha sem prego era possível, groselha e ovo cru com mais açúcar.
Mais brilhantina pras mininas.
Poço no quintal de todo mundo.
E quem sabe até atocaiar de vez a morte, mandá-la embora.
E livrar-se pra sempre dos pecados que a gente nem sabia como arranjava.

Mas as mais velhas botavam na gente.
Quando descascava cana pra gente chupá
Ou de noite pedindo a Deus clemência por nós ao pé de nossa cama.

A chuva me fazia pensar que Deus era cruel e perverso com quem era pobre.
A ponto de mãe que lavava, quarava e enxaguava uma roupa tão cheirosa e alvinha.

Não tinha dinheiro pra comprar pregador de varal.
E prendia as roupas no farpado do arame, bem amarrado, para ela não escapar.

Mas na hora da agonia da chuva, na aflição derradeira, tinha que puxar até rasgar, depois da chuva tinha que costurar.
Bom que ela quando costurava cantava, era tão bonito.
Parecia que ela viajava para outro lugar.

Eu queria acabar com a pobreza, mas seguiria rasgando as roupas só pra ouvir ela cantar.
Cada qual se guardava em sua solidão.

Se chovia e a bisa estava em casa eu ficava entre os pés dela e a janela espiando os pingos pipocar na terra.
E colocando linha mais curta na agulha dela.
A bisa não via nada, nadinha, o olho dela não tinha brilho, eu olhava lá dentro.
Mas era ligeira e linguaruda igual a gente tudo.

Dizem que quando Deus tira uma coisa ele capricha noutra.

Se eu achasse o ouro do arco-íris eu ia comprar um par de olhos pra ela novinho.
Mesmo sem enxergar ela costurava e cantava e ainda dava pitaco nas músicas de mãe.

- Parecida, há quanto tempo não visitas os umbrais da casa de Deus hein?
- Precisa voltar pra não cantar música profana dentro de casa.

Ela não gostava das canções que mãe entoava, mas eu gostava das músicas das duas.

Às vezes quando a chuva ia embora saia um sol bem fininho.
Era ele que trazia o danado do arco-íris.

Quantas vezes que eu e meus amigos nos aventuramos pra bandas da vila em busca de encontrar a fonte de riqueza.
Íamos alegres cheios de planos e voltávamos cansados da aventura.
A gente só voltava porque ficava tarde e dava confusão escurecer sem a gente em casa.
Mas ficava planejado, marcado, que da próxima vez a gente iria mais longe.

Por aquele momento era inventar uma mentira e esperar pelo pior pois a surra era certa.
Depois ela rezava e pronto, ficava tudo bem.

É que naquela época a gente era propriedade de nossas mais velhas e elas podiam fazer com a gente o que bem entendessem.
Depois da chuva, a terra tinha um cheiro bom.
Tinha gente que até comia terra, diziam que era doença, eu comia e gostava.
Não sei se era pobreza.
Acho que era uma tal de ansiedade.
Mas aquele negócio de olhar a serra e dizer que ia chover era coisa de entendimento pra o futuro nas asas do tempo.
Parecia que ela estava blefando dizendo coisa pra pegar a gente nalguma surpresa.

Demorou muito pra eu perceber que quando a serra muda de verde pra branco
É que lá vem temporal.

Nos meados que a estória andou a gente foi e voltou.
E era ainda o mesmo quintal de chuvas antigas.
Mas desta vez eu morava ainda no mesmo lote, mas a casa ficava de costa pra serra.

De forma que só via a chuva quando ela batia no telhado.
E que medo eu descobri que a chuva me trazia.
Não a chuva comum, fininha, mansa.
A chuva de tempestade mesmo, de trovão e raios que o parta, ventania, pedra.
Às vezes tudo junto.

Mãe fez a premonição lá atras dizendo que a chuva era perigosa.
Eu entendi no tempo de entender, que realmente fazia mal mesmo.
E de lá onde eu estava vigiando filho de madame ou lavando seus canecos, eu em silêncio rezava pra que este Deus aí tivesse piedade dos filhos que, tendo mãe, ainda assim ficava sozinhos porque emprestava a sua para filhos de outros.

Ah, se eu tivesse encontrado o arco-íris.
Quando eu estava em casa e chovia, caso a roupa estivesse no varal.
Lá ela ficava.

Chuva não suja roupa, a não ser que o vento quebre a corda.
Era uma aventura recolher a roupa às pressas sem esquecer nenhuma.
Felizes eram as galinhas que tinham um único casaco.
Não sei por que que a gente tem tanta tralha.
E porque com tanto varal tem que enganchar as peças em cerca de arame farpado.
Será que era pra roupa não fugir?
Não vadiar no vento?
Pregador era luxo.

Lá pra baixo pras bandas do Fidalgo, onde todos os riozinhos se encontravam.
O rio transbordava e subia.
A água ficava forte e levava o que topasse pela frente.
Às vezes nem estava chovendo e a água mesmo assim subia e os antigos diziam.

Mistério!
Fim do mundo!
Castigo!

Hoje quando vou à cabeceira de nossas águas, aqui bem pertinho em Mairiporã, sempre lembro deste fato que já me fez rezar muito mais que o necessário.
Eram águas das gerais de Guimarães Rosa, um poeta amigo meu.
Mairiporã está a minutos de minha casa.
Eu só descobri há pouco tempo.
Tem a represa, muitas cachoeiras e as sete quedas que tem tanta água.
Um barulho ensurdecedor que o aguaceiro faz.

Quando quero ver beleza, eu vou lá.
Beleza perigosa, sabe?
Muita gente já morreu afogada lá.
Estão fazendo uma usina.
Era pra aquela direção que a gente procurava o arco-íris.

Ao dar um passo na vida fiquei bem ao pé da serra, fiquei par a par com o lugar onde a chuva nasce.
Levei mãe pra conhecer e descobri que ela gostava de pescar lá.
Odeio pescar.
Acho que ela também procurava o pote de ouro.
Trazia muitas tilápias pra gente comer daquelas águas.

Eu não gosto de pescar e esqueci como se reza.
Mas precisava relembrar, porque a chuva me dava medo quando caia no telhado.

As pedras furavam o telhado.
O vento arrastava o telhado.
Tive que procurar o livreto de reza a liturgia do catecismo, coisa que aprendi a não acreditar.
Mas precisei apelar por medo real da chuva levar a única riqueza que eu tinha.
Que ficava encolhido na cama debaixo do beliche igual passarinho enquanto eu, aflita, colocava os baldes nas goteiras.
Estancava pontos de enxurrada que vinham me chamar pra brincar cá dentro de casa.
Já que eu não saia mais pra correr na água.

Mas afinal de contas quem inventou a pobreza?

E foram muitos Pai Nosso sem vontade.
Muitas Salve Rainha sem prestígio.
Muitos credos sem almas.
Eu nem tinha fé, eu tinha medo e achava que só quem poderia parar de nos ameaçar da tormenta era quem a havia mandado.
Não, santo de barro e padre sacristão ou pastor não entendem de milagre.

Mesmo assim dei muitos ovos a Santa Clara pelo fato dela ser mulher como eu.
Sempre rezava e prometia que assim que a chuva parasse de me ameaçar eu voltaria à igreja.
Mas eu nunca voltava porque passando a chuva parava o medo e eu esquecia.

Só lembrava de outra feita quando a serra embranquecia e o temporal se dava.

Um dia a água levou um menino lá na Ponte do Jaçanã.
Era o filho de um vizinho que atravessou a correnteza pra não se demorar em chegar em casa.
As lágrimas da mãe caiam enquanto ela se lamentava de ter sido assim tão mãe.
Eu era de minha mãe.
Meus filhos eram meus.

Quando pude realizar o sonho da minha vida eu o realizei.
Comprar um terreno era um, ter uma casa com laje era outro.
Mesmo assim o medo me invadia.

Ainda falta tanta laje pra dissipar o medo da gente.
Corrente de oração ajuda, mas não barra a correnteza sacrificada pelas usinas.
E no mais a mais mesmo a culpa é de Deus.

Um dia falei com ele de igual pra igual.
Quer saber? Eu não paguei mesmo nenhuma promessa, nem pago.
Porque o que eu tenho é medo.
Muito embora não desdenhe tua existência.

Exu é que me guarda os caminhos e deve ser um irmão seu até.
E se eu tenho assim hoje tanto medo de chuva.
Tenho muito mais medo da pobreza e está eu sei, não foi Deus quem criou.

Mas a mim foi ato sublime ter nascido desta forma.

Sim, eu não voltei pra igreja, não paguei promessas.

Dizem que Deus fez o homem a sua imagem e semelhança.
Então ele entende, sabe que na hora prometo sim, mas depois preciso correr atrás de grana pra repor tudo o que a tempestade levou.

E os carnês vão de doze em doze meses pra acabar.
Então não quero cobrança, porque dizem os cristãos e outros aí, que Deus fez os homens.
Estes com seus olhos de usura criaram este monstro chamado pobreza.

A gente pra se livrar dela precisa de trabalhar e não é pouco.
Porque a cada dia que se passa eles fazem usinas e vendendo pra gente que sempre paga a conta.
E arco-íris que é bom mesmo fica cada vez mais longe.
Então fica de olho pra serra, esbranquiçou, corre que a tormenta se avizinha.
Esquece o pingo que pinga debaixo da pia, bote o balde na goteira.
Não demora e vai chovê.