Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Até que enfim é Carnaval
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Às vésperas das festas de momo.
Do rei Bufão.
Às vésperas da gente viver o festival dos tolos.
Mas desta vez numa outra vibe.
Estou sob meu governo.
Eu vou cantar no bloco.
Vim passando minha vida entre sonhos e temporais.
Arriscando minha opinião entre corais e cascalhos.
Com meus sonhos coloridos enfeitados de sinos e paetês.
Mas pra que paetês numa vida tão bruta?
A vida em si nem bruta era.
Era um arrastar de dia a dia na esperança de, entre um carrascal e outro, salvar ao menos a ideia de ser feliz, quem sabe um dia.
Exilada no deserto que oscilava pra dentro de mim.
Já fui rei.
Já fui juiz.
Este ano eu vou cantar na banda ou melhor no bloco.
Exu bem que sempre me avisou:
"Tu vais, prepara-te, tu vais!"
Mas quando?
"No tempo certo tu vais, é certo que vais. Prepara a letra, encanta a voz, mais cedo ou mais tarde, quando a hora chegar, tu subirás no carro e cantarás. E a convite, o que será mais especial. Crê no tempo e na promessa de mim que sou um encantado, um mistério. Tu vais"
"Por hora todavia és apenas querelante, vives de pequenas querelas e daquilo que julguem possível migalhar. Hoje sóis mera lagarta, porém confies que tuas asas te chegar-te-ão de onde nem imaginas. E toda lagarta só rasteja até criar asas."
E batata, semana passada o menino me mandou mensagem dizendo: "Mãe, quer cantar no bloco LAB?"
Tinha nem roupa para responder, mas respondi que sim.
A vida toda sempre tentei, desde que vi o povo vestido de colorido na ponte da feira de domingo.
O carnaval se mostrou aos meus olhos infantes bem cedo.
Eu prometi a mim que assim que fosse gente grande e caminhasse por minha vontade eu iria procurar a toca daquele povo feliz.
Minha bisa não gostava deles chamava os filhos de tal e coisa.
Que como cristã a bisa tinha como maior companhia um ser horrível.
Onde será que guardavam a roupa bonita e pra onde iam.
Porque durante o ano inteiro éramos vizinhos.
Minha primeira experiência com o carnaval foi num baile.
Numa tarde depois de muito eu chorar e implorar, os grandes de casa decidiram deixar-me estar entre determinado grupo.
Ainda não era como eu queria.
Sem plumas, sem paetês.
Uma vizinha nos levou a festa de tarde ali no Jaçanã no antigo Cine Coliseu.
Um salão de propriedade do senhor José Bettio.
Foi a primeira vez que me vi diante de algo que só conhecia de ouvir falar no rádio.
Minha mãe frequentava aquela casa aos finais de semana.
Mas nunca deixou escapar palavra, mas eu sabia.
A gente sempre fica sabendo mesmo sem querer.
Era até pecado mãe ir ali, acho que por isso ela se mantinha em segredo.
Trabalhar em dois empregos tudo bem, mas se divertir nem pensar.
Era preciso guardar o quinhão da igreja.
A gente fazia parte de uma qualidade de gente que ocupava as terras atalibenses há bem pouco tempo.
Éramos querelantes ali, cada qual com suas vontades guardadas.
Se por um lado a gente queria conhecer o restante do mundo.
Por outro lado, nos era cobrado a todo momento a decoreba obrigatória.
A salve rainha.
O credo.
As Ave Marias do terço tinham que estar na ponta da língua.
Era esperado que através da igreja uma porta se abriria pra nós no futuro pra ser criada numa das casas de portuguesas ou espanholas aqui da região.
E muito embora estes se divertiam à sua maneira.
Não nos era permitido saber mais.
Nós, herdeiros dos tolos, tínhamos que nos manter sem pecado, sem veneno.
Da Sezefredo Fagundes pra cá.
E como por um lado não havia saída, saímos por outro caminho, pelo Jaçanã de Adoniran Barbosa.
Foi uma tarde memorável, longe do culto, do terço e da doutrina, eu queria mais, muito mais.
Ficou pra muito tempo na minha lembrança.
Toda vez que o impossível me ameaçava eu voltava pra lembrança daquela tarde sem brilho e sem fantasia.
Mas cheio de alegria, porque eu estava repleta de felicidade de estar ali.
Quando cheguei em casa fui recebida com uma frase ruim:
"Espero que tenha gostado porque foste desta vez e nunca mais, você é menina de família"
Veremos!
Quem tiraria de mim aquilo que já era meu, quem derrubaria as cercas da minha existência e tiraria de lá a melhor parte que é a parte colorida... Ninguém.
Todavia se não me tiraram esta parte, tentaram.
Fiquei tão triste que adoeci e por algum tempo perdi a fé no encantado.
Mais tarde eu me vi vendendo cachaça pra os foliantes lá na Avenida Tiradentes.
Era pra ali que deviam ir as pessoas coloridas da ponte da rua da feira de domingo.
Agora o carnaval me ajudava a ganhar o pão vendendo cachaça.
Teve um ano que fui convidada a levar minhas crianças pra sair numa escola, fiquei contente.
Naquele domingo eu acordei e fui botar minha barraca de especiarias na feira de domingo na rua da ponte.
Agora eu morava no Jardim Fontalis.
Passei a manhã imaginando:
"Minhas crianças irão ao carnaval pelas minhas mãos"
Eu não consegui estar, mas mostraria a elas. É muito importante ensinar as crianças que o mundo é colorido também.
Às 14 horas o carro foi nos buscar.
De passagem ali na Avenida Tiradentes houve uma confusão e eu me perdi das crianças.
Foi um desespero, pessoas coloridas e desconhecidas me impediram de acompanhar as meninas no cortejo.
Gritavam comigo e ordenavam a elas!
"Andem!!!"
Elas não iam, cobriam os olhinhos com as mãos e choravam e chamavam por mim.
Eu não esperava por aquilo.
Dali saímos em mais nem sei quantos blocos.
Era tarde da noite e seguíamos de lugar em lugar de déu em déu como diz minha mãe. Sem alimento.
De sorte que eu tinha alguma coisa que dividia com as crias.
Numa certa hora o ônibus vinha pela beirada do Rio Tietê que naquela época não tinha aquelas proteções de alvenaria.
Chovia muito e a água invadiu o asfalto tornando todo caminho um rio sem margem.
Algumas mulheres brincavam com o motorista que também bebia e admirava o corpo seminu delas.
De repente o ônibus pendeu pra um único lado.
As pessoas estavam quase todas de um único lado e bêbados cantando, acharam que fosse uma aventura.
Alguém deu uma bronca no motorista quando o ônibus retornou pra posição normal.
E tirou as moças que o distraíam do entorno dele.
Chegamos de volta ao Fontalis por volta de 2 horas da manhã da segunda-feira.
Com fome, sede, canseira e agradecida por não ter acontecido o pior.
Cada um fez daquele dia sua própria releitura.
Eu entendi que o carnaval não era o que eu pensava, que minha mãe tinha razão.
E que eu deveria voltar à igreja.
A gente que vive à margem da pobreza está sempre entre a cruz e a caldeira.
Temos sempre a nossa disposição a trilogia:
Diversão, prostituição, esperança em ordens variadas.
Naquele que jurei a mim:
Enquanto eu viver carnaval não mais.
Anos depois rompi a jura e fui a um bloco de rua longe de casa.
Foi bem diferente daquele dia no Cine Coliseu.
Passaram tanto a mão pelo meu corpo, a cada minuto uma mão me invadia e eu corria sem sair do lugar pra fugir da agressão.
Quando consegui sair eu me perdi do grupo, sentei-me na calçada e chorei.
Não por muito tempo porque bem ali perto vinha a polícia arrumando o bloco com cacetete na mão.
Corri, entrei na estação do metrô Tiradentes.
Depois construíram o sambódromo, que era muito longe de tudo.
Mas no início ainda dava pra dar uma olhada pelas beiradas.
O samba nasceu de nós.
Gestado, parido por nossos ancestrais, era semba antes de o ser.
Parido e criado no morro, gestado no ndotolo de gente maravilhosa e real.
Cresceu, apanhou, foi humilhado, preso, seus instrumentos foram encarcerados pelo inimigo por muito tempo.
Lembro que naquele tempo nossas mães diziam:
"Cuidado, quem é preso no carnaval só sai na quarta-feira"
E não era mentira.
Uma noite minha mãe, o Seu Dito e Dona Vanda tiveram que ir a delegacia da Água Fria buscar os meninos que foram presos brincando carnaval.
Achei bonito eles chegarem em casa, meu irmão estava muito engraçado com uma corda no pescoço imitando gravata e uma mala velha.
Ele sorria pra não chorar, depois chorou sem entender por que foi preso por estar brincando e minha mãe falou:
"Você é negro, comporte-se, você não vai me ter pra sempre"
O samba cresceu e foi adotado, ficou distante de nós.
Hoje as escolas de samba são branqueadas de passo marcado, exercitadas e severamente ricas.
Mantendo os pobres nos lugares marcados, são escultores, marceneiros, vidraceiros, costureiras, figurinistas, desenhistas, artesãos.
Gente empenhada em construir a ilusão.
Porque tem sonhos, como a velha baiana que no passado foi passista e brincou em ala.
Hoje surge da comunidade do nada.
São baianas, empurradores de carro alegórico.
A festa de momo cresceu, higienizou-se e abandonou a casa dos pais.
Apartou-se da casa de seus ancestrais e branqueou-se.
Mas eu sou territorialista.
Amante das histórias e das memórias do meu lugar.
E Exú nunca me iludiu.
Hoje, domingo de tardezinha, eu vou cantar no bloco como artista.
E que venha a quaresma com nossos restos de fantasias e alegrias reais.
Tivemos que nos apartar do mundo caricato pra reviver alegrias de gente real que somos.
E não me espere pra pagar pecados desta vez.
Eu não moro mais neste lugar.
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