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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entre o Ancestral, o Básico e o Necessário

"Há várias fomes no mundo, a minha é por conhecimento" - Victor Balde
'Há várias fomes no mundo, a minha é por conhecimento' Imagem: Victor Balde

Colunista de Ecoa, em São Paulo (SP)

05/03/2023 06h00

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As matérias terrestres; madeira, pedra, barro, e os frutos da terra; farinha, fios, palha estão à nossa volta e ao alcance das mãos.
Lidar com elas, transformá-las não é privilégio dos artistas.
Não é dado só a eles sentir simpatia pela matéria.
É parte da vida cotidiana, parte de experiências tão simples como abrir uma gaveta e pegar um objeto amado.
Como fazer ponta em um lápis, diz Bachelard citando Michel Leiris.
Tudo aí é fruição.
O ruído do cortar, o perfume de madeira, o ajustar a pressão a faca.
Nada falta, nem sons, nem odores.

"Tempo de Camélia".
Zelita Seabra

Considero este livro como um naco de pão.
Um dia, fugindo da Avenida Paulista, de uma certa livraria, eu o encontrei.
Nosso encontro nem foi por amor.
Foi necessidade.
Ele sabia que eu precisava dele como alimento.
Naquele tempo eu visitava livrarias e pedia indicações de boa leitura.
Mas como sou exagerada quando me apaixono, precisava evitar o ambiente porque não conseguia sair de lá sem comprar.
Entrava pedindo ao Deus da literatura que não me permitisse comprar nada.
Saía satisfeita com dois exemplares ou mais feliz da vida feito uma criança que só desejava agora a sombra de uma mangueira e um pacote de biscoito.
E a presença daquela paixão momentânea que me levaria a viajar.
Até a última página.
Como é difícil estar numa viagem maravilhosa e a viagem acabar assim do nada?
E como rei morto é rei posto?
Assim que findava uma leitura eu corria à livraria buscar outro.O
difícil é que a livraria me foi apresentada numa época difícil de minha vida.
Pouco dinheiro, muitas contas a pagar.
Naquele tempo estávamos tentando erguer lá em casa as paredes de alvenaria.
O madeirite que usamos pra erguer as paredes eram quase descartáveis.
Já dava pra ver o outro lado da rua através deles.
Um dia até acordamos com uma cobra de um metro mais ou menos dentro de casa.
Quase dormindo entre nós.
E já estávamos chegando em ponto de laje.
Comprávamos material de seis em seis meses, quando findava um carnê abríamos outro.
Porque além da dívida com material tinha os passes escolares das crianças, o mercado, água, luz, telefone, o fubá das doze cachorras e os diversos.
As cachorras não eram minhas, as crianças acharam na rua e trouxeram pra casa, como eu permiti me tornei responsável por elas.
Os diversos era uma pizza por mês, talvez um cinema gratuito, visitas ao museu do Ipiranga e alguma festinha perto de casa.
Um dia andando pela livraria eu encontrei um livro que falava de África e quis que ele fosse morar em casa pra folheá-lo sem pressa.
Mas tinha um empecilho, o preço.
Custava R$380,00.
R$380,00 era o valor que precisávamos pra comprar vinte sacos de cimento.
Mas como resistir à força que o amor reserva pra gente?
Como usar a irresponsabilidade a seu favor?
Como viver aquele momento, sem deixar a culpa me corroer por dentro?
Não resisti e comprei.
Cheguei em casa com o objeto da minha paixão escondido nas costas.
Escondi no quarto pra ele se acostumar com a nova família.
Eu precisava escondê-lo porque era grave gastar dinheiro com supérfluo quando o necessário pedia reparação.
Era pra ser segredo, mas qual o vivente que apaixonado consegue fazer segredo de sua mais nova paixão?
Toda hora eu achava um momento de me esgueirar de meu posto de mulher mãe negra sem dinheiro.
Pra viver a aventura daquela viagem.
E eu fui descoberta.
- Que livro é este?
- Achei!
A culpa corroeu em mim.
Foi desde então que resolvi mudar de caminho e não ir mais à tal livraria.
Mudei de caminho, troquei a Rebouças pela Teodoro Sampaio.
Mas não me livrei de loja, de livro, troquei a livraria pelo sebo.

E foi ali que vi, folheei o livro e o deitei de volta na banca.
Mas Amanda, minha amiga que nem era de leitura.
Amanda gostava de mudar a cor do cabelo.
Tem quem não goste de cor.
Tem quem não suporte leitura.
Os estabelecidos sempre caçaram e torturaram o inovador.
Os inovadores sempre torturaram os estabelecidos.
A economia é gritante na hora de alimentar nossa vontade.
Amanda pegou o livro e disse:
- Não sei por que, mas acho que este livro é a sua cara.
- Mas tá horrível, todo rasgado, faltando pedaço, deve faltar até páginas.
Pelo sim ou pelo não, comprei, era barato.
Já no ônibus comecei a folhear minha mais nova aquisição e ali nasceu o amor.
Tem amores que valem 380.
Tem alimentos que valem R$3,80, foi o que paguei pelo "Tempo de Camélia".
Era livro, amor, alimento necessário.
Eu nunca mais pude viver sem ele.
Sim, faltavam páginas, por isso, assim que pude, comprei um exemplar novo pela internet.
E dei um altar, um lugar de honra ao primeiro livro.
E até hoje somos unha e carne.
E não consigo dizer o quanto este livro me devolveu a mim.
Além de me encaminhar às bibliotecas e à pesquisa sobre tudo o que eu queria e precisava saber.
Eu enchi o ndotolo das minhas fruteiras de doçura de letras.
E foi neste caminhar que notei que cada tempo tem um cheiro e uma cor.
Quando eu sinto o cheiro de café sendo coado, volto a uma releitura distante lá na cozinha de minha mãe.
Não o café de máquina, os sintéticos, mas o legítimo café passado no saco.
Teve um tempo que li o livro: "Ninguém escreve ao Coronel".
Um homem que prejudicou muita gente em busca de um posto maior, uma patente.
Agora numa extrema pobreza dividia o último pouco de pó de café da lata.
Todo dia ia ao correio pra buscar o cheque prometido por seu suborno.
Nunca veio, mas ele tinha esperança, morreu com ela.
Antes deixou de ser coronel pra cuidar de galo de briga.
Como a vida pode mudar, antigamente ele perseguia as rinhas de briga de galo e agora vivia de apostas.
Há várias fomes no mundo, a minha é por conhecimento.
Assim sendo, eu matava uma fome e em seguida abria caminho pra outra
Era aquilo que eu precisava desde criança, conhecimento, e ele chegara.
Logo em seguida andei debaixo da mangueira com outro amigo, o Orígenes Lessa.
Uma árvore que sonhava ser nobre, um pinhozinho qualquer.
Queria ser um piano, mas virou um cabo de vassoura.
Viveu triste atrás da porta de madame sendo humilhado pelo escovão e pela enceradeira.
Um dia ficou velho e foi acolhido por um menino, e viveu as maiores aventuras de sua vida.
Depois li "Meu Pé de Laranja Lima".
Quanta violência, quanto descaso com o pequeno menino criativo.
Eu me vi ali.
Depois foi amado pelo português que mostrou a ele que a vida tinha um lado bom.
Mas o malvado Mangaratiba matou o português sem dó.
Passou por cima dele.
Ninguém sabia do amor dele pelo português.
Só quem sabia era o pé de laranja lima.
Um dia a árvore entrou dentro da febre dele e deu uma péssima notícia:
- Zezé, estou indo embora, daqui pra frente não podemos mais conversar, mas nunca esqueça que eu te amo.
Eu chorei neste trecho por vários dias porque o livro dava muitas voltas.
E eu lia e torcia pra que tudo desse certo.
Eu me alimentava de esperança.
Foi ali que voltei a minha infância e lembrei do pé de flores branquinhas que caiam na minha cabeça.
No dia que fui arrancada de meu quintal o pé de mirra chorou por mim.
Quando voltei, eu estava doente, o convento quase que me matou, voltei sem andar e sem falar, foi muita violência com minha criança.

Um dia pela manhã eu saí no quintal quando consegui me por de pé e fui surpreendida.
Nenhuma planta falava comigo, nem o abacateiro, a mexeriqueira, a goiabeira ou a mirra.
Eu chorei a ausência silenciosa de meus amigos.
A dor ali era igual a de Zezé, ela marcava o momento de crescer.
A distância ali era alimento pra que eu tomasse responsabilidade pela vida de adulto.
Mas eu só tinha seis anos.
Passaram-se quarenta anos e o pé laranja lima me acordou pra o ndotolo em mim.
Saí pela vida procurando aquele que havia sido meu alimento, meu primeiro grande amor.
Um dia, andando pelas ruas da Lapa, achei a planta, uma árvore de folhas aveludas.
O perfume da minha infância voltou e hoje vivemos juntinhas.
A tristeza de Zezé entrou em mim e me curou.
Leitura é alimento e remédio.

Não existe sociedade sem regras.
Gaiarsa em seu livro "O Tratado de Fofoca" disse:
"Sociedade quer dizer minha casa"
Na casa está o alimento ou deveria estar.
Todo cidadão deve obedecer às regras do jogo.
Numa sociedade existem os normais e os marginais.
Temos mil vontades que os outros dizem não ter.
Principalmente em matéria de amor, sexo e alimento.
Na minha idade, assumir que gosto mesmo é de um bom livro debaixo de uma mangueira com um pacote de biscoito é um hábito lido como ridículo, ou coisa de criança, não ligo.
A gente vai adoecendo vida afora por querer ser aceito, nos contemos, nos mutilamos e só mostramos o que convém.
Ficando desnutridos de sonhar.
Dane-se.
O lado mais cruel do contrato social é que:
"Eu mato metade de mim mesma e você mata metade de você mesmo".
Só assim podemos montar um grupo, casar e ter alimento.
Viramos assim uma poderosa multidão de meias pessoas guardando pra si anseios e sonhos mais profundos e inocentes.
Embora seja trágico e traga várias fomes, é considerado normal, só há um pequeno erro na história.
O que a gente esconde não morre nem desaparece.
Vai ficando dolorido e deformado.
Um pouco de sede leva-me a procurar água, muita sede pode me levar ao assassinato ou ao delírio.
Ah meu caro Gaiarsa, quanta sabedoria existe em teus livros.
Voltemos à fonte primeva de nossos reais contratos conosco.
Agora eu escrevo, afinal era este um dos meus sonhos de infância, plantar a leitura como alimento.
Em louvor ao alimento, mesmo que doa.
Deixa eu sonhar.
A liberdade está na dor.