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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não se esqueça de plantar amor hoje

"Toda vez que o mundo me abala, eu me reconstruo na fala deste grupo de matriarcas" - Victor Balde
'Toda vez que o mundo me abala, eu me reconstruo na fala deste grupo de matriarcas' Imagem: Victor Balde

Colunista de Ecoa, em São Paulo (SP)

12/03/2023 06h00

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Lembro como se fosse hoje o dia em que alguns amores foram achegados a mim.
Como sol nas minhas pequenas sombras.
Na beira da fogueira,
Na boca da borda do poço.
Batendo mato e
Catando cambuquira.
Nos meus caminhos de descalça russinha,
Mesmo quando mãe prometia assar-me a batata, eu incauta pensava:
"Eba! Hoje tem purê ou bolinho de batata".

As palavras sempre vêm em bloco pra ser separadas ou disparadas com o cal do tempo.
Já a interpretação é longeva e ao bel prazer da criação interna.
Abraçada às lufadas de ventania,
Cada tempestade espalha todos os destroços da gente.
Depois, cabe a cada um recolher tudo o que a enxurrada levou
e realocar no mesmo lugar ou num novo.
Como diz minha mãe:
"O vento também bate na cangalha para o animal entender".
Eu também tenho um animal em mim, que embrutece e urra.
Quem não os traz aos pés de si, os tem amarrados aos alicerces ou atrás da porta?
Feito um lobo errante que de repente solta a voz, cria pelo e cabelo nas ventas.
Sai de si em busca de entendimento.
Porque o ser humano carece de carinho e entendimento.
E depois de fazer seu lamento, dar seu passeio solitário sobre a terra entre os mortais, os ditos "homens de bem",
Se recolhe ao mundo interno , onde tudo é sensível e escuro
como o fundo de uma gaveta.
O mundo das memórias.

Há momentos que as garras dos felinos se afinam e pedem: "me entenda".
Sempre há momentos...
Lembro que, em certos dias nas horinhas de descanso, sempre se dava uma folguinha pra pensar na vida e jogar conversa fora.
Chupar cana pra alegrar a vida e dar margens às fumaças de possibilidades,
porque elas existem em algum lugar.
A gente nunca sabe onde exatamente, mas quem já a descobriu
já sabe que a chave para abrir tal porta é o amor.
Não o amor enovelado pela televisão, mas aquele que se sente cá dentro do peito;
A força que torna tudo possível ou pelo menos suportável.

Não, nem tudo foi amor, há as necessidades também.
Elas sempre vêm, junto ali coladinhas,
ficando assim muito difícil de apartar uma coisa da outra.
Imagine que, de repente, o simples ato de deixar fluir uma palavra boa
pode alumiar o pavio da vida de alguém pra toda eternidade dela.
Mesmo a boca que falou:
"nunca mais faça caso de lembrar quem carrega a lanterna",
é sempre a primeira a receber a luz.
Digo e redigo.

Um dia aí pra trás, nem lembro se de sol ou chuva, sem horário certo,
mas com falha de certeza pode ser que fosse de tarde.
Pelo resvalar da memória, estávamos sentados debaixo de alguma sombra.
Poderia ser em qualquer mês se estivéssemos ali a chupar cana,
mas se fosse manga verde seria entre novembro e janeiro.
Se fosse abacate, de janeiro a março.
Se goiaba, fevereiro.
Mixirica, então era junho.
Caso fosse manga, não teria ali os adultos que são avessos à manga verde e não estariam pensando nas notas de boletim escolar.
A gente já sabia tanta coisa, só faltava nota.
Era importante lá em casa estar entre os primeiros,
somente passar de ano não era importante.
Precisava ser com louvor, acima da média.
Isto fazia toda diferença na hora de sonhar.
Debaixo daquelas sombras havia a disputa do tempo.
Mãe dizia e ainda diz que enquanto negros sempre é preciso fazer mil vezes pra ficar próximo do bom. Nunca está bom o bastante.
Com nosso boletim era a mesma coisa.
Mil tentativas, resultado ruim.
O que movia a gente era a esperança falsa dos contos de fada
e o doce da fruta.

Como eu dizia,
não teria ali ninguém adulto, além de nós, uma faca qualquer e um pote de sal,
trazido de alguma cozinha .
Tá vendo como o tempo da natureza ainda existe?
Torcendo pra gente não destruí-lo de vez.
Depois do tempo da manga, antes dos abacates, era férias.
Depois disso, o ano se abria todinho e a gente tinha tempo
pra ir lá para o Jardim São João roubar ameixas do japonês
e correr dos cachorros enormes que ele soltava atrás da gente.
Mas isso são detalhes atalibanos passados, que a mão do tempo ventou e derrubou,
deixando só este veio de memória no meu pensamento.
Naquela tarde, as mulheres se refrescavam e tiravam conversa
antes de recolher a roupa do quarador.
O mote era: "o que minha filha tem de mais bonito".
Eu estava de orelhas abertas, aquele assunto era de extremo interesse meu.
Todas elas, uma a uma, iam chamando pelo nome da filha
e discursando sobre beleza e qualidade.
Eu já conhecia minhas qualidades, que mãe rasgava a torto e a direito.
Orgulho de mim ela já tinha, agora carecia botar beleza.
"Russa levanta cedinho, lava o rosto, penteia o cabelinho e é sempre muito jeitosa.
Eu nem preciso mandar", ela dizia.
Mesmo quando eu aprontava coisas que ela não gostava, ela me tinha orgulho.
Mesmo quando cortei a cadeira dela com a gilete do tio fazer à barba,
ela manteve o orgulho.
Não deixou de acertar as contas comigo,
mas mantinha minha patente de independência.

A conversa seguia de boca em ouvido.
Em seguida, todas mulheres ali seguiam o exemplo e teciam comentários.
Eu tinha pressa sentada ali ao lado delas,
aguardava a palavra voltar à boca de minha matriarca.
Queria ver o que ela diria sobre mim.
Que estranho ela não me pôr beleza ou outra presteza
Toda vez que a fala era devolvida, ela se lembrava de outra arte minha.
Eu pra dentro murchava,
mas a roda da conversa ia virar até a hora da ave maria.
Ainda havia sol, ainda poderia ser.
Toda vez que a palavra mudava pra outras mulheres eu contava o tempo e
pedia em pensamento para cada uma falar rápido.
Pra conversa voltar ao lugar de meu interesse.
Na roda, havia uma mulher que nem lavava roupa ali com as outras e nem tinha filhos.
Dona Dora, a mulher da casa onde todos nós assistíamos televisão.
Só na casa dela tinha TV, só ela me tinha um olhar diferente.
Ela vinha até ali na roda do poço pra não ficar só.
Engraçado né, como podia alguém com uma caixa daquela em casa,
cheia de gente fazendo um mundaréu de coisa,
se sentir sozinha.
Era assim que ela se sentia.

Lembro que depois de muitas voltas de conversa, de vai e vem,
eu ia perdendo as esperanças.
Minha mãe já foi reprovada por mim por não me dar função ou beleza.
Eu já havia voltado à vaca fria, quando de repente algo ou alguém
me abençoou com a palavra esperada.
Dona Dora disse:
"Eu de mim digo, Maria, minha russinha pode não ser dona de toda beleza
como a irmã, mas tem o mais belo par de pernas bem torneadas que eu já vi".
E Dona Dora já havia morado em muitos lugares,
porque o marido era caminhoneiro e eles viajavam o mundo inteiro.
Então o que aquela mulher dizia tinha poder.
Eu fiquei orgulhosa de mim.
Corri para olhar as batatas de minhas pernas,
que até aquele momento eu pensava ser apenas dois pedaços de pau
que usava pra caminhar.
Elas me levavam a todo lugar e eu nem notava elas, nenhuma das duas.
Agora, foram elevadas a importantes e belas
pela fala amorosa daquela mulher,
que não foi escolhida pra me dar passagem,
trazer-me ao mundo,
mas foi escolhida pra me potencializar.
E desde que eu fui elevada à categoria de o mais belo par de pernas do Ataliba,
Aceitei a categoria e elevei-me.
Saí do plano baixo, dos não belos.
E assim, toda vez que o mundo me abala, me abafa, me reprime
toda vez que o racismo e o machismo abalam minha existência,
eu me reconstruo na fala deste grupo de matriarcas, sentadas à sombra da tarde.
Dali, eu escolho a melhor fala daquele dia: a dela.
O mais belo par de pernas que eu já vi no mundo,
disse ela.
Com licença da palavra.
É de mim que ela está falando.
É de amor que estamos falando, obrigada!