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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

E para o resto da existência em mim

"A pedra de onde a gente mora é o melhor adubo pra nossas plantas" - Victor Balde
"A pedra de onde a gente mora é o melhor adubo pra nossas plantas" Imagem: Victor Balde

16/04/2023 06h00

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Estou ouvindo por tudo que é lugar que o mundo vai dar uma grande virada.
E vai se acabar.
A inteligência artificial está dominando mundos, corpos e corpas.
E o pior.
As pessoas de falso caráter herdeiros, dos que se fazem donos do universo onde nossos corpos passeiam.
Estes têm em seu poder as melhores regiões da terra.
Primeiro entristeci, foi a primeira emoção que me invadiu.
E permaneceu ali, ensebando, cheirando a sepulcro e vela acesa.
Depois repensei.
Nem sempre o cheiro de vela acesa está ligado à tristeza.
Numa oportunidade de fazer valer o meu dia, tentei sorrir pra dentro.
Onde vai meu moleque Nico toda vez que quiser fugir destas respostas prontas.
Dadas por quem pensa que domina.
E ela até domina sim, mas domina os corpos e corpas que a acolhem e abrigam.
Sim, é verdade, não tenho uma contratação há meses.
A etariedade chegou pra mim já há algum tempo.
Eu não percebi por que do mundo pra dentro de mim sou tomada de uma energia e uma imensidão de alegria de vontade de fazer o melhor.
Imponho a mim ter necessidade de amanhecer sempre com um propósito bom, todas as manhãs.
Esta sempre foi a vontade do meu Nico.
E para adiar o fim do mundo, pra viver cada dia intensamente até que os donos deste mundo acabem com ele.
Viveremos o meu mundo, porque pra dentro de mim nenhum deles tem lugar.
Nem na minha cabeça (ndotolo) e nem na minha rua.
Talvez nos lugares aonde vou eles tenham já seu caminho marcado.
Daqui pra lá começando pela Rua Coronel Sezefredo Fagundes parente do Sargento Batavo a desordem se instala.
Desde o pé da pedreira que fica a dois minutos de minha casa e estraga tudo o que a natureza nos dá.
A pedreira não é ruim.
Pó de pedra é um adubo muito poderoso.
É a pedra que Yansã nos traz no vento.
A pedra de onde a gente mora é o melhor adubo pra nossas plantas.
Além de não poluir porque já pertence a Serra da Cantareira.
Ela tem o papel de embaciar as águas sem barrá-las.

As águas passam, as águas sempre passam.
No entanto, aqui elas são dinamitadas todos os dias.
Às 11 horas e às 17 horas, era o nosso relógio, foi meu mediador de tempo em cinquenta e tantos anos.
Depois a empresa foi processada porque as implosões racharam as paredes das casas.
Prometeram então se conter nestas ideias de guerrear pedra adentro.
Quando iniciaram as obras do Rodoanel, este que está aqui inutilizado.
Toda vez que iam usar as dinamites que disseram que não usariam mais, eles usaram de uma estratégia.
Mandavam uma carta dizendo que iriam dinamitar a área e quem não quisesse estar aqui no momento que aceitassem o passeio oferecido pela empreiteira.
Assim, momentos antes da implosão chegava aqui um ônibus e levava os moradores pra um passeio noutro lugar da cidade.
Quem não aceitou, e esta que vos escreve é uma delas, sentiu no corpo e na alma a casa tremer no momento da implosão.
As casas racharam e era o que a empresa esperava.
Mas agora o esquecimento caiu na cabeça das pessoas deixando ali a memória do passeio.
A empresa alegou nos processos recentes que a causa das rachaduras nas paredes das casas eram porque nossas casas são feitas por pedreiros do bairro.
E não por gente especializada.
As gentes especializadas penaram pra derrubar os escombros das paredes das casas construídas pelos pedreiros da vila.
Pediram até ajuda e muitos deles tiveram que trazer máquinas pra desenterrar a ferragem dos alicerces.
O Rodoanel desapropriou tantas casas na minha região, algumas desnecessariamente.
Foi o fim do mundo pra muitos vizinhos meus.
Quando os donos do mundo chegam protegidos pela lei, pelo estado e pela igreja.
O mundo de algumas pessoas acaba mesmo.
Mas acaba aqui pra recomeçar noutro lugar.

Quando eu era criança, a mesma trilogia: Estado, lei e igreja, dizimaram quase todo Baixo Xingu pra fazer a Transamazônica.
Você que está lendo estas mal traçadas linhas sabem onde está a estrada idealizada nos meados dos anos 70?
Todavia o povo do Xingu aí está em menor quantidade com memórias de sofrimento que poderia ser evitado.
Se a trilogia aí citada parasse de dar ouvidos a ideias destrutivas.
Tentaram destruir o mundo do povo do Xingu e conseguiram de certa forma.
Depois entraram pra dentro de si e pra dentro da mata, para dentro da sua natureza e reconstruíram o seu próprio mundo.
Em menor lugar, com certeza.
Já que o dono do mundo tem um documento feito pela igreja que diz:
As terras que meus olhos veem e aquelas que não vejo pertencem todas a coroa do rei de Portugal.
E serão distribuídas a seu bel prazer a aqueles que as merecer.
E este será seu novo dono e senhor assim como tudo o que estiver sobre ela.
Já aqueles que vivem sobre estas terras que agora pertencem ao citado rei e a igreja poderá nelas viver caso aceite o novo costume regido pela santa sé e deixe de viver a vida que vivem cheia de pecados.
O tal rei não existe e o papa da época também não.
Mas o documento é ativo e existe e se faz valer com o poder chamado militarização.
A força criada pra proteger.
Resta saber a quem?
Naquele tempo eu era criança, nem imaginava de que forma aquilo abalaria minha vida.
Estava sendo moldada pra servir de exército de reserva no futuro, pela escola e igreja da minha região.
Os donos do mundo gostam de banheiro lavado e cheiroso por mãos negras.
Tentaram já acabar com meu mundo criativo desta forma.
Mas eu me recusei a ser criada pra ser criada.
Sei limpar uma casa? Sei.
Sei cozinhar? Sei.
Sei cuidar de um corpo humanizadamente? Sei.
Sei potencializar? Sei sim, mas isto é pra os meus.
Tudo o que eu potencializo cresce, fica potente, chegando ficar maior que eu até.

Sou herdeira do matriarcado tanto indígena quanto africano, sei cuidar e fazer tudo desde o início.
Se precisamos de uma gamela moldamos o barro.
Se precisamos de uma rede um tecido plantamos o algodão, beneficiamos o fio, cardamos, fiamos e tecemos.
Se comemos os ovos, guardamos as casas, elas são ricas em cálcio.
Assim o nosso mundo sempre tem princípio, meio e depois o fim.
E nos nossos modos vivendi, o que termina se inicia todo dia na chegada do de vir.
Ai pra festejar a gente cava a rocha sim, faz adubo e faz tinta pra pintar o corpo.
Faz bebidas com as folhas da natureza.
Sabe o que eu acho?
A trilogia que cito aí acima tem inveja do mundo que nós temos dentro de nós.
Eles são tão pobres que só tem dinheiro.
É pena que tornaram o mundo tão dependente dele com suas doenças e mania de destruição que ao destruir o mundo de nossos ancestrais, nossos matriarcados.
Tentaram também destruir a invenção sagrada da natureza, todas as mulheres destas nações.
Mas nós resistimos porque somos feitas do Barro de Nanã e este a igreja invade, tortura, mas não estraga de tudo.
Foi assim desde as invasões bárbaras a séculos atrás.

Quem mora em São Paulo, como eu, já passou pela Rua Direita, Praça da República, São Bento, Praça da Sé.
Quem por ali passou há tempos e viu a importância daquele lugar hoje vê entristecido o abandono do lugar e o abandono dos corpos e corpas ali abandonados entregues à própria sorte.
A mão fria da justiça da morte que lhes tira o direito de um lugar, neste lugar pertencido erroneamente ao tal rei citado acima.
Parece que o mundo deles se acaba, mas não de todo.
Todo dia várias entidades do bem flutuam ali e tentam fazer o possível pra estes corpos.
Gente que tem uma profissão de fé.
Que fazem o bem todo dia sem olhar a quem, o Padre Lancellotti é um deles.
Mas somos muitos, somos sim, cada um no seu lugar.
Mesmo correndo risco de ser pisoteado, massacrado ou atingido com armas criadas pra nos matar.
Sim, alguns de nós morrem.
Mas renascem dentro da nossa esperança.
A esperança também é um lugar que o patriarcado hegemônico não alcança.

Eu mesma estou aqui escrevendo e sei que este nosso mundo está prestes a se acabar, são as últimas semanas, penúltimas letras.
Quem quiser conviver com a minha luz, terá que vir ao circo da minha região.
É lá que eu me reinventarei doravante.
Aqui, se serve de consolo, deixo a poesia de um amigo que não lembro o nome.
Um dia sei que morro
O que se há de fazer
Morrer pouco me importa
O duro é deixar de viver