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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Adulto sabe fazer brinquedo?

Colunista do UOL

23/04/2023 06h00

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Não, o título nem é realmente todo meu. Mudei uma coisinha aqui e ali por amor à escrita de um colega, Wallace Leal Valentim Rodrigues, que escreveu "E, para o resto da vida...". Posso dizer, com toda certeza, que este livro me salvou a vida há muito tempo quando eu ainda não tinha acesso a minha própria história. Eu saí do fundo de um poço profundo.

Por isso, até hoje, quando alguém brinca comigo dizendo que livro de autoajuda é coisa de criança, que deve ser lido como um passatempo comum entre esta ou aquela fase, eu devolvo a brincadeira dizendo que brinquedo nem deveria ser construído por adultos. Adulto não sabe brincar.

Há certos desenhos infantis que dão ensinamentos imensos. E se fazem entender por gente de toda idade, até para aqueles que nunca querem entender. Uma questão importante que aprendi neste livro diz sobre dar presentes. Nesta minha idade já vivi toda sorte de presente infame que as crianças recebem. Que são presentes no primeiro dia e depois...

Alguém se recorda de quando era moda dar pintinhos amarelinhos de presente? Aqueles que o homem da Kombi passava trocando por garrafa no tempo que vidro não era lixo. Então... Num dia era o pintinho amarelinho. Dias depois era um ser incompreendido dentro da casa. Se apartamento era ainda pior porque a natureza dele era de subir, cantar, ciscar, fazer-se liderança, ter umas companheiras, constituir família, envelhecer e...A força do instinto rompia barreira na marra pra disputar território. A cabeceira da cama e o parapeito das janelas e varandas virava poleiro. Com seis meses já seria um galo branco temido por qualquer pessoa que entrasse na casa, na rua, no quintal. Irado por viver ali com sua natureza de dentro, no entanto longe da natureza de seus ancestrais. Ele surtava, atacava sem dó crianças, adultos e até outros animais.

Existiam duas formas de se livrar do presente, ou dava de presente dentro duma caixa a outra pessoa que de preferência tivesse um sítio. Ou entregar a uma boa cozinheira ou à avó da gente e comê-lo. Mas como fazer uma malvadeza desta com a pobre criatura? Naquela época não era difícil, era até pensável como melhor solução. Quem fará esta pergunta nunca, nunca viveu esta realidade. De ficar horas a fio trancado nalgum lugar e olhando pelas frestas o dono da sua vida e da casa. E sua vida passando e o galo ali esperando você sair.

Outra questão, como contar ao patrão que a namorada que ficou acuada dentro do banheiro pelo presente que ela deu a alguém de aniversário? Como compreender que aquele tiquinho de vida lindo, todo amarelinho, poderia vir a se tornar um ser tão monstruoso?
Há quem diga que os animais de cada casa, assim como as crianças, têm a personalidade do dono. Não sei dizer se é verdade, mas não duvido.

E tenho certeza, a ideia do presente veio de um adulto, eles não sabem brincar. Como a história que contarei a seguir.

Um amigo chegou à casa de outro amigo com um embrulho. Dentro do embrulho havia uma espingarda que foi dada ao infante da casa. O pai olhou apreensivo o artefato, ele não soube como recusar a arma e nem teve tempo. A criança saiu correndo para experimentar o novo presente ou o armamento bélico que recebera. Em seguida voltou com o que considerou seu primeiro prêmio.
Um corpo de um pardalzinho inerte jazia ali na mão dele. O olhar preocupado do pai era visível, mas não percebível. Naquela época todos os garotos tinham suas armas e matavam animais pra mostrar um monte de coisa que a sociedade pensava importante.

Mais tarde, o garoto procurou o pai e o encontrou no jardim aconchegando um ninho que ele havia achado caído. Dentro tinha quatro passarinhos abrindo e fechando o bico sem parar. "Estão famintos e sentem a falta da mãe, vou precisar alimentá-los, você me ajuda?" Os dois trabalharam juntos até o anoitecer pegando insetos em teias de aranha e recolhendo minhocas. Tudo valia como alimento para aquelas boquinhas que tudo consumiam e incansavelmente pediam mais. Ao cair da noite, o pai envolveu cada avezinha com algodão.

Pela manhã ao checar o ninho encontraram um passarinho sem vida. Redobraram os cuidados naquele dia e mesmo assim, no segundo dia, morreu o segundo passarinho. No entanto, agora restavam dois, talvez o alimento encontrado fosse suficiente pras duas boquinhas. Infelizmente o terceiro infantezinho morreu. Era muito triste ver os esforços diários de pai e filho não terem sucesso. O pai então lembrou o filho de que o pior estava por acontecer. Caso aquele miúdo sobrevivesse e tivesse as primeiras pluminhas que virariam penas, quem o ensinaria a ousadia dos primeiros voos em segurança?

Eles tinham boa vontade, mas não sabiam voar. Sabiam ajudar a falar, engatinhar, andar, mas como voar não sabiam. Tampouco soube proteger seu próprio filho dos amigos que dão armas de presente. Alguns dias depois o menino presenciou o que era previsto. O passarinho sozinho se equilibrava na beirada do ninho tentando ele mesmo dar o primeiro voo. Pendeu pra cá, depois pendeu pra lá, depois foi ao chão. Que nem era longe, mas pra quem estava ainda meio fraco e sentindo a perda de toda sua família. O chão se fez duro e a queda foi fatal.

O pai calado estava, calado ficou. O menino, no entanto, caiu em prantos dizendo ter sido ele o causador da morte dos passarinhos ao ter matado o pardalzinho que deveria ser a mãe de todos eles. O pai pra dentro de si também sofria, se sentia culpado, no pensamento dele sabia o que aconteceu Quando ele não soube dizer ao amigo infeliz: Não permito que armem meus filhos! Arma não é brinquedo!

O menino prometeu nunca mais cometer o erro de perseguir os animaizinhos do quintal. Espero que ele tenha cumprido.

Eu quando criança já tive algumas destas brincadeiras violentas mesmo não estando armada. Depois também a vida me ensinou duramente algumas verdades. Eu conto e reconto esta história para os meus, que a sabem contar de trás pra frente de tanto que eu conto. As pessoas ficam horrorizadas com o final. Mas nunca aprendem.

Dia desses uma pessoa trouxe para o meu netinho três armas, duas de plástico e um arco e flecha. Eu tive que me posicionar e como sempre fui mal interpretada. Mas não vou me calar nunca. Não armem as crianças com coisas que ameacem a segurança de outras pessoas porque a vítima pode vir a ser você.