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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Amarre o teu arado a uma estrela: um até breve

"Não vou me despedir de vocês, isto é apenas um até breve" - CC
'Não vou me despedir de vocês, isto é apenas um até breve' Imagem: CC

Colunista do UOL

30/04/2023 06h00

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Eu sempre achei esta parte da letra de Gilberto Gil tão linda que fiz deste pedacinho um recado, enquanto...
Enquanto havia espera enquanto o sonho era só um presságio.
A princípio chegou a mim como uma missão e depois tornou-se pesadelo.
Quase me levou às portas do manicômio.
Sim, fui diagnosticada com DNV (Distúrbio Neuro Vegetativo), era este o nome que se dava à depressão em 1976.
Ano que ouvi Belchior cantar "A Palo Seco".
Formava-se em mim um entendimento de que ou eu aceitava o que estava posto, ou seja, aceitava rodo, vassoura e balde.
E como disse a diretora da minha escola, "Aceite os desígnios de Deus que sua vida melhora".
Eu não queria lavar latrinas da escola, eu queria escrever.
Eu sabia escrever e segundo minha professora do primeiro ano eu era muito inteligente.
Segundo a professora do segundo ano, tudo o que eu escrevia tinha princípio, meio e fim.
Só a diretora e algumas outras professoras balançavam a cabeça e negavam meu direito à escrita.
Algumas impiedosamente liam o que eu escrevia, me acusavam de ter roubado o texto de alguém pra depois rasgar a folha e colocar na lata de lixo.
As crianças riam de mim.
A faxineira escritora que tinha preguiça de trabalhar.
Um dia uma professora disse que os portugueses estavam certos em bater nos negros escravizados.
Que gente como eu só entendia seu lugar com castigo, fome e penitência.
Eu mal afinava nas orações na salve rainha, no credo lia e relia até decorar.
Porque nos grupos de orações eu era chamada pra puxar o cordão de reza das crianças.
Mas na volta das pedras do estradão mais uma vez minha leitura era posta à prova.
As mães olhavam pra mim com cara de desdém.
Só me olhavam com honestidade quando minha mãe ia junto.
Ou quando precisavam de uma colher de pó de café, um bocado de alguma coisa ou ainda da água do poço que tinha no meu quintal.
Até mesmo mãe achava absurdo eu querer me meter com escrita e leitura, se pra pessoas como eu estava marcado o dia em que eu entraria a trabalhar na casa de madame.
O máximo que ela esperava de mim, ou melhor, de nós, era que a gente aprendesse a escrever o próprio nome e o endereço de casa.
Mas a danada da voz de dentro da minha cabeça dizia:
"Não é verdade o que dizem sobre você, continue, não se renda, não pare de ler".
Mas o movimento que eu tinha de gente presencial contra mim era muito grande.
Tanto que quando eu escrevi sobre minha maior tristeza que era lavar latrinas no lugar onde entrei pra saber tanta coisa.
Cheguei ali cheia de perguntas sobre a natureza e sobre o mundo.
Perguntas que foram murchando com o passar do tempo, foram morrendo e dando lugar a outras perguntas.
"Por que ninguém gosta do meu cabelo?"
"Por que só eu tenho que sair da sala e trabalhar?"
"Por que eu não posso escrever?"
Mais tarde a pergunta que intensificou.
"Por que eu tenho que vir a este lugar?"
Não tenho.
E dei de me retirar dele sorrateiramente e me embrenhar na mata da Serra da Cantareira.
Conviver com taturanas, lagartas, formigas, macacos, cobras e lagartos era muito mais suave.
Deixei pra lá este negócio de decorar reza naquele dia que a portuguesa disse que o único caminho das negrinhas desta região era a reza e o trabalho de empregada doméstica na casa delas.
E uma frase que, na época, não entendi naquele momento.
Elas servem de diversão aos nossos meninos enquanto estes não se casam.
Ou de ama de leite que ainda dava algum dinheiro porque Deus nos havia abençoado com bom leite.
Eu fiz de tudo pra esquecer as orações que decorei.
Depois tentei relembrar pra ter como consolo num dia de tempestade quando o vento ameaçava arrancar o telhado.
No entanto havia uma mensagem dentro de mim enviada continuamente que dizia:
"Lute pelo que você julga importante"
Que contrastava com uma fala da minha família:
"Não existe professora preta".
Quando eu escrevi a redação que me expulsou da escola, já era quase tempo de eu ir embora de casa trabalhar na casa da tal madame.
Alguns dias antes, uma amiga que já trabalhava numa casa em Santana me convidou para conhecer a casa em que ela trabalhava.
Era pra eu ir me acostumando.
O danado é que esta casa era na rua da Biblioteca Narbal Fontes no Castelinho, ali perto do mercado Pastorinho.
Ao sair do apartamento eu entrei no Castelinho e a mulher que trabalhava ali me disse que eu poderia escolher um livro e ler.
Poderia até sentar se quisesse.
Só não poderia levar o livro pra casa, tinha que ler e deixar ali.
Eu tinha uma ilusão que pra sair do mundo que eu vivia como alguém que pudesse escrever eu teria que ser salva por um príncipe encantado que viria num cavalo alado e me levaria a viver num castelo, talvez.
Quando encontrei aquele castelo imaginei que seria dali que ele viria.
Dei de fazer ouvidos moucos pra tudo o que eu ouvia pra me preparar para o meu momento.
A única folha de papel importante para as pessoas da minha casa era o dinheiro.
O tempo passou, o príncipe não veio.
É um tempo muito longe, tudo demora muito quando se tem a idade da incompreensão.
Um dia minha mãe arrumou uma mala e colocou na porta da casa.
Se eu não tivesse combinado comigo de não ouvi-la ou prestar atenção ao que ela dizia,
eu saberia as roupas naquela mala de quem eram.
Só mais tarde, já na porta da armadilha, quando a menina me disse:
"Descasque esta laranja pra eu ver se você será minha empregada"
Eu joguei a laranja longe e ela confirmou a triste notícia.
"Não tem volta, sua mala já está na minha casa"
Eu tento esquecer e não consigo.
Porque minha mãe não gostava de mim a ponto de viver tentando me dar pras pessoas sem me avisar ao menos.
Foi uma tarde perversa, três ou quatro horas, talvez três, quatro ou cinco mulheres tentando me fazer descascar uma maldita laranja.
Já bem de tardezinha uma voz masculina gritou:
"Vocês vão matar ela, olhem o sangue escorrendo, ela não quer trabalhar, deixa essa vagabunda! A mãe dela educou ela errado".
Eu preferiria ter morrido, eu tentei me matar duas vezes.
No dia seguinte eu acordei em casa, fui de carro daquela família.
Hoje eu sei o porquê do privilégio.
Pra evitar perguntas sobre o sangue no meu rosto.
No dia seguinte quando eu me levantei eu não tinha roupa minha pra vestir, minha gaveta estava vazia.
Me disseram que se eu pedisse desculpas àquela família talvez eu ainda tivesse uma chance.
Senti saudades de lavar as latrinas da escola.
Pelo menos minhas roupas estavam ali na minha gaveta.
Não foi difícil pra mim entender que eu tinha uma gaveta ali porque ali era minha casa, minha família, minha defesa.
Não foi difícil entender que eu ali nunca teria nada daquilo.
O destino levou um dos membros da minha família naquela semana.
Meu irmão morreu afogado.
Foram seis dias para o mar devolvê-lo pra que a gente pudesse enterrá-lo depois de vê-lo pela última vez.
Ele namorava uma moça que também ninguém gostava e ela estava grávida dele.
Que morreu uma semana antes da minha sobrinha nascer.
Cadê meu príncipe encantado que não vinha pra eu sair deste lugar horrível.
Onde a saída possível pra ser aceita era a morte.
Eu saí, minha mãe chorou.
Eu chorei por cinquenta e tantos anos.
Deixei a escrita pra lá, eu precisava agora de dar comida aos filhos que arranjei.
O príncipe não veio, chegou toda uma realeza que veio através de mim e me ensinou que o amor é uma força possível.
Eu tive que defendê-los da família, da sociedade e do mesmo manicômio que me ameaçou.
Até hoje aqui onde eu moro ainda se criam meninos e meninas pra vestir rosa e azul.
Alguns como eu resistem até onde podem.
No meu caso valeu a pena resistir.
Mas pra sobreviver eu me vali de tudo o que aprendi aqui dos saberes e fazeres desta região.
E muitas vezes até reproduzi muitas das ignorâncias que me feriram.
Não preparei minhas filhas pra ser empregada doméstica.
Mas também não consegui dizer a elas pra o que elas serviam.
Porque como eu elas não paravam de trabalhar pra potencializar nosso macharal.
A gente trabalha sem perceber por amor, sabe.
Quando vê a gente já fez, tá feito.
De sorte que no nosso caso tivemos algum apoio.
Há dois anos o UOL me deu a chance.
Chamou-me pra escrever na coluna em Ecoa.
Através do olhar de Tony Marlon.
Daí eu me perguntei:
"Escrever o que, pra quem, de onde tirarei o que escrever?"
A voz dentro de mim respondeu:
"Deixe de ser besta, olha pra trás, você tem um livro, o Café, vários cadernos, um Lunário Perpétuo inédito.
E uma cabeça incrível cheia de passarinho que é inédita.
Entre por esta oportunidade enquanto está na terra de pé pra defender sua vontade".
O primeiro texto que escrevi foi em agradecimento a Lemba, a bandeira branca, o Orixá da minha lei.
Porque por esta porta aberta pela LAB, pelo UOL, saiu em liberdade o príncipe esperado dizendo:
"Eu sou seu filho mais velho, seu dom, sua fé, suas vontades mais bonitas.
Estive preso no armário do seu subconsciente até hoje.
Só você poderia me libertar porque a poesia reside nos lugares difíceis.
E me libertando você automaticamente se liberta também."
Eu sou o cavalo que me rege.
Eu sou a Dona Jacira, a Yaci Ira, a dona de mim.
E agradeço a toda minha equipe por andar comigo.
Não vou me despedir de vocês, isto é apenas um até breve.