Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Olhos de girassóis: uma memória afetiva na saúde pública
Fevereiro de 1994, inverno em Itapetim, cidade na microrregião do Sertão do Pajeú de Pernambuco, mas, assim como todos os anos anteriores e posteriores, as golas das camisas seguiam molhadas de suor. "Arra, quentura!", foi a única fala captada do médico ofegante, João Borges, que já chegou no hospital municipal pedindo para que não gravassem a ocasião. Durou nove horas a cirurgia que me colocaria no mundo. Bem, se você está lendo esse texto é porque deu certo. Nasci. O cortejo de parentes felizes seguiu Janete Salvador, minha mãe, indo em direção a um quarto cheio de flores e deixando para trás uma mesa cirúrgica por limpar.
Na mesa ao lado da sua cama, num jarrinho, um girassol fazia companhia para uma Janete adormecida de cansaço e alegria. Como alegria de pobre dura pouco, um choro de bebê estrondou o pequeno prédio público, acordando Janete num espanto vertiginoso: "Ufa, Jefferson está dormindo". Todavia, a ausência das fofocas das enfermeiras nos corredores fez com que o cuspe de susto ainda não descesse a garganta. O silêncio anunciava o nascimento de Naiza Lima, que se amamentaria de Janete nas primeiras semanas, pois, por causa de uma infecção generalizada ocasionada pela má higienização da sala de cirurgia, sua mãe, Maria Aparecida Vieira Costa, não pôde compartilhar a visão daquele girassol do quarto. O cortejo de parentes tristes seguiu Maria Aparecida, já não mais mãe, indo em direção a um carro cheio de flores e deixando para trás uma mesa cirúrgica por limpar.
A meta que mata
"Olhe para ele, tá inchando mais", dizia minha mãe, toda santa vez que me aplicavam dipirona quando eu tinha uma crise alérgica. O plot twist: eu sempre fui alérgico a dipirona. Até os meus 18 anos, quando fui morar em Olinda, eu e Janete nos acompanhávamos de errinhos médicos em errinhos médicos naquelas retirantes aventuras dos hospitais sertanejos. Em 2018, diagnosticada com pedra nos rins e encaminhada de Itapetim-PE, ela passou por hospitais de cidades como Patos-PB, São José do Egito-PE, Afogados da Ingazeira-PE e Caruaru-PE, antes de chegar ao Otávio de Freitas, hospital regional da zona oeste do Recife, em setembro.
A negligência por despreparo de pontuais funcionários do sertão deu lugar a negligência por descontrole operacional da capital. Quando fui encontrá-la no HOF, pisava como em um campo minado de adoentados no chão, desviava do engarrafamento de macas que iam para lá e para cá com jovens baleados gemendo de dor e idosos solitários com fratura expostas. Entrei no quarto onde a minha mãe estava, procurei ela com os meus olhos bem apertadinhos, pois a fluorescente 30 watts não parava de piscar, e a vi deitada, no mesmo sono não gritante que um dia tive na maternidade.
Neste mesmo dia, o médico Nelson Coutinho era chamado de mentiroso em um grupo no whatsapp de oncologistas onde ele tinha mandado a foto da ressonância de Janete, o mesmo exame que todos os médicos anteriores tiveram acesso. "Não é possível que alguém com tantos tumores ainda esteja vivo", duvidavam. Ele me anunciou a tal da metástase, explicou que havia um câncer espalhado por diversos órgãos e que o danado estava claramente visível há pelo menos um ano. Recebi a notícia na quarta-feira, 26 de setembro, em seguida, no sábado, consegui encaixá-la no chique e já sem utilidade Hospital de Câncer de Pernambuco. Na segunda, dia 1 de outubro, o mesmo carro que buscou Maria Aparecida em 1994 se preparava para buscá-la em 2018.
Quando eu soube do câncer, ainda na quarta, saí da sala do doutor Coutinho e fui em direção ao quarto onde a minha mãe estava, sem mais notar o coro de gemidos ou as incansáveis piscadas da fluorescente 30 watts, na minha mente só ecoava que tudo aquilo poderia ter sido evitado se os médicos do sertão não atendessem nas pressas por causa de uma meta diária desproporcional com a realidade que o SUS estabelece. Quando cheguei no quarto, Janete estava acordada me esperando com um sorriso esperançoso ou muito bem fingido. Seus olhos brilhantes estavam florados de um tom amarelo forte, onde a única pretitude visível era a da pupila no centro do olhar. O efeito acontecia porque o câncer já tinha destruído o seu fígado, mas, mesmo sabendo disso, ela brincou: "meus olhinhos viraram dois girassóis, né?".
* Jefferson Sousa é jornalista, pesquisador e cineasta. Integrou jornais como G1 Pernambuco e Jornal do Commercio do Recife, vencendo o Prêmio Cristina Tavares de Jornalismo Literário 2018 com a série de reportagens "Poetas analfabetos do Sertão do Pajeú de Pernambuco", homônima ao seu primeiro curta-metragem independente. Em 2019, o seu documentário "Leonardo Bastião, o poeta analfabeto" circulou em festivais de cinema no Reino Unido, Rússia, França, Bósnia & Herzegovina, Índia e Japão, saindo vencedor nos três últimos.
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