Topo

#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo

Alexandre Ribeiro segurando a carta de aprovação da faculdade em uma das mãos, e o seu primeiro romance, ?Reservado?, na outra.  - Lucas Sampaio/Divulgação
Alexandre Ribeiro segurando a carta de aprovação da faculdade em uma das mãos, e o seu primeiro romance, ?Reservado?, na outra.
Imagem: Lucas Sampaio/Divulgação

12/03/2021 04h00

Nos meus 14 anos de idade, enquanto fazia uma oficina de DJ na Casa do Hip Hop de Diadema, vi um adesivo colado nos equipamentos do DJ Boby que dizia o seguinte:

"Todo camburão tem um pouco de navio negreiro"

Essa ideia me marcou por uma vida inteira e veio me revisitar há poucos dias atrás, quando recebi a notícia de que eu - um jovem colorido, escritor e favelado - ganhei uma bolsa de estudos integral no curso: "BA in Humanities, the Arts, and Social Thought" na universidade americana Bard College Berlin. Na estreia da nossa coluna #DaQuebradaProMundo aqui em Ecoa queria partilhar e refletir os porquês dessa epifania que tive. Buscar entender o exato momento, que como em um "flashback-dos-incentivos" a frase do adesivo ganhou uma releitura na minha mente:

"Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo"

"Quilombo" provém das línguas Quimbundo e Umbundo (dos povos Bantu, habitantes da Angola) e pode ter dois significados. O primeiro, na origem dos idiomas, pode ser traduzido como uma "zona habitacional" (um salve pras COHAB!). E em segundo, o que foi adaptado para a história brasileira é o significado "esconderijo na mata". Termo esse que, com o próprio tempo foi reconstruído e pensado como "comunidades autônomas para acolher fugitivos".

Mas o que exatamente um esconderijo na mata tem a ver com uma bolsa de estudos? A resposta não é direta, pois assim como na história do Brasil colorido, nossa vida é puro simbolismo. Em um país que a cada 23 minutos é assassinado um jovem negro, os meus heróis e heroínas me salvaram quando se aquilombaram. Decidiram me esconder na mata da educação.

Para muitos historiadores brasileiros os quilombos foram muito mais do que esconderijos. Foram também uma resistência contra o sistema escravocrata da época e dos dias de hoje. Nos quase quatro séculos de tensões e tretas, os quilombos funcionaram como uma verdadeira válvula de escape - acolhendo, permitindo o culto às religiões de matriz africana e retomando a liberdade - para diluir a violência da escravidão.

Foi combatendo o apagamento histórico que essas comunidades resistiram e continuam vivas. E atualmente, para jovens como eu, um quilombo é apresentado de uma nova maneira: nós somos herdeiros desse legado. Para muito além de um território de acolhimento, de pluralidade, de liberdade, hoje "quilombo" é um simbolismo. Um quilombo mora no peito dos educadores, dos revolucionários. Um quilombo é a casa da esperança.

Rodrigo Ciríaco - Acervo Pessoal/Alexandre Ribeiro - Acervo Pessoal/Alexandre Ribeiro
Silvia Ribeiro, Rodrigo Ciríaco, Alexandre Ribeiro e Michelle Fernandes, da esquerda para direita. Dia da Premiação Literária ?Pode Pá É Nóis Que Tá Vol. 3? onde Alexandre ficou em terceiro lugar.
Imagem: Acervo Pessoal/Alexandre Ribeiro

Tive a vida salva e transformada por quilombolas da selva de concreto. A primeira revolucionária da minha trajetória foi aquela que olhou para os meus textos e me deu nota dez. A inesquecível professora de português do ensino médio, Michelle. Aprendemos literatura com "Fim de Semana no Parque" dos Racionais MC's. Ela nos ensinou a ler poesia nas vidas que também eram nossas.

Logo em seguida, assim que finalizei o ensino médio, tive a perspectiva transformada graças ao trabalho da Amanda Rahra e da Nina Weingrill, que fundaram a Escola de Jornalismo da Enóis. Foi nas aulas da EJ onde ao lado delas e do Fred Di Giacomo e do Vicente Goés que fui incentivado. Um simples "você escreve bem" foi munição para meu rebento e daí nasceu o primeiro conto: "o dia em que minha barriga escreveu um poema". Conto esse que me fez ganhar um prêmio literário e ter o meu primeiro romance publicado.

Tive a vida salva pelas políticas de cotas raciais que me adentraram na UFABC. Tive a vida salva pelo Hip Hop que me fez vender CDs na rua até chegar a trabalhar na Lab Fantasma. Tive a vida salva pelo amor descrito pela Bell Hooks. Um amor revolucionário e que não conhece fronteira, me entregou de peito aberto à minha companheira, Jessica Küttner, e foi assim que um moleque de favela cruzou atlântico por um amor-versado.

Numa trajetória de muito suor, muita sorte e alguns privilégios, o fator determinante para que eu pudesse estar aqui, vivo, é o seguinte: fui fortalecido por meus quilombolas. Nos esconderijos da nossa sociedade a gente se encontrou. Foi usando nossas tecnologias de amor e saberes que "combinamos de não morrer", e seguimos transmitindo o legado.

Receber uma bolsa de estudos no Bard College Berlin é ser #DaQuebradaProMundo. Ser Da Quebrada Pro Mundo é ter noção de que não há melhor maneira de sonhar senão do que de olhos abertos. E sonhar de olhos abertos é ter noção das maldades do mundo, colocar elas no devido lugar, e buscar inspiração na vida e trajetória de nossos quilombolas.

Para transformar essas cruéis estatísticas de camburões negreiros é que nós existimos e exaltamos a importância de nossos quilombos. Para que a gente possa inserir o que quiser e o que couber, em nossas releituras. Para que a gente se insira. Para que a gente ecoe.

"Toda bolsa de estudos tem um pouco de quilombo"