Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Os Mandrakes invadindo a universidade
Você já ouviu falar da expressão "Mandrake"? A depender de sua origem, essa palavra pode ser uma gíria, pode ter uma relação com a filosofia, ou pode não ter significado nenhum. E nessa sexta-feira, na volta da coluna #DaQuebradaProMundo aqui em Ecoa eu quero te convidar para dar um pião na aplicação dessa gíria em vários universos. Bora?
Essa coluna foi batizada por conta da minha experiência do outro lado do Atlântico. Vale a pena ressaltar que eu, Alexandre Ribeiro, sou o moleque preto de favela, filho de diarista, estudando em uma universidade americana em Berlim. Quem diria, né?
Na verdade, eu não somente diria e nem somente sonharia. Eu acredito que a nossa presença nesses espaços é necessária, é um ato revolucionário. Um ato essencial para construirmos um conhecimento, de fato, libertador. Chega mais que eu te explico.
Esse semestre na faculdade estamos nos debruçando na obra "República" de Platão. Obra essa que foca em responder o que é a justiça. No meio da leitura do livro seis, quando Sócrates está fazendo a analogia do barco, me deparei com a seguinte frase: "E [ele] terá claramente bebido muito mandrake" (Platão, República 488C)".
Mandrake, caso você não saiba, é uma gíria utilizada nas quebradas de São Paulo para definir um verdadeiro maloqueiro/maloqueira. Alguém que está sempre com o kit em dia (se veste bem), tem o corpo tatuado, é inteligente, tem a sabedoria das ruas e a autoestima bem alta. Como esse termo foi parar nas periferias? Não se tem a menor ideia. Como isso foi parar no texto de Platão? Eu te explico.
O termo "mandrake" foi primeiramente utilizado na literatura em grego, e definia uma erva venenosa, que é o sentido usado na obra de Platão quando Sócrates se refere aos tripulantes do barco em sua analogia.
O termo, que na minha visão é o que está sendo atualmente utilizado para definir o que no passado recente foi o termo "chavoso", apareceu nas quebradas há poucos anos e veio para ficar. A palavra chegou a ser usada em alguns outros contextos, mas sempre para se referir a uma erva. Somente na década de 1920 é que essa palavra foi utilizada para nomear um personagem de histórias em quadrinhos, o mágico Mandrake. E há quem diga que, por conta do bigodinho fininho, exista uma associação entre o mágico e a gíria.
Nós podemos fazer diversas associações com o termo, criar todas as ficções de como uma planta medicinal foi se tornar uma maneira de definir um maloqueiro, mas o ponto aqui é o seguinte: a palavra se transforma porque a quebrada é criativa. E nossa criatividade é valiosa.
O significado da palavra Mandrake, em si, não é o mais importante. Mas sim a aplicação da palavra. É como a vida, sabe? As atitudes têm mais potência do que palavras vazias. Na hora que estávamos lendo em voz alta o trecho da obra de Platão eu dei uma leve risada. Somente eu na sala toda. Senti ecoar com meu sorriso uma mistura de tristeza e esperança. Naquela instituição, sou o primeiro morador de quebrada a firmar os pés. Sou o único de noiz lá dentro e, por isso, me sinto só.
Entretanto, depois de meu riso se esvair o que ficou foi o eco na minha mente. Não estou só, na verdade. Na real eu sou uma das sementes, sou um dos sonhos de nossos ancestrais que lutaram para que a gente possa ter acesso ao conhecimento. Naquela sala não estou sozinho. Comigo mora a possibilidade de transformar a minha família, de voltar com um diploma e transformar a minha favela. Eu, assim como você, sou a maioria do nosso país. Somos aqueles que são capazes de enxergar na tarefa mais cotidiana, na leitura de um texto, a complexidade das relações sociais e raciais. Somos capazes de ler as gírias que eles não conseguem ler e colocamos em prática os porquês de o conhecimento ser a definição de liberdade para o nosso povo.
Se eles querem mesmo mudar o mundo a academia precisa mais da gente do que a gente precisa da academia. Somente quando a gente tiver mais e mais Mandrakes e Mandrakas nas universidades é que a gente vai poder fazer esse tipo de associação entre a favela e a academia, e, de fato, o conhecimento revolucionar.
E, se você ainda não adentrou a faculdade, mas se sentiu inspirado e quer entrar na faculdade, se liga nesse vídeo do monstrão "Chavoso da USP" que ele te dá dicas praticas de como começar. É #DaQuebradaProMundo
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