Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Betânia Schröder: das favelas de Recife até Frankfurt, Alemanha
Alemanha, Angola, Bósnia e Herzegovina, Brasil e Turquia. Esses são os países que atravessam a trajetória da fotojornalista, socióloga, editora e colunista Betânia Ramos Schröder. Para cruzar os quatro cantos do planeta, a menina negra que cresceu na periferia do Recife teve uma história repleta de amor, território e resistência.
Nessa coluna #DQPM (Da Quebrada Pro Mundo) eu te convido para conhecer essa história, te convido para se encantar.
Bate-papo com Betânia
Quem é a Betânia por Betânia?
É um desafio falar de mim. Especialmente para nós, ativistas, mulheres negras, como a gente conhece muito essa experiência da negação, a gente vive a experiência contínua do silenciamento, da invisibilidade. Então falar de si é ao mesmo tempo se fazer visível. Sou uma menina migrante, com a história marcada pelos deslocamentos, pela pobreza, pela miséria, pela resistência política partindo do meu avô.
Quem foi o seu avô?
Joventino Candido Ramos. Meu avô teve os antepassados escravizados no Engenho de Manguinhos, em Alagoas. Ele era sindicalista e fundou o Partido Comunista de Maceió. Depois, rompendo com a permanência no local no pós escravidão, meu avô foi para Recife fortalecer a luta do sindicato dos estivadores. A minha formação política vem de casa, dos encontros com o meu avô, mas também vem do grupo de Jovens da Pastoral da Juventude, onde eu fui escolhida para ser representante da nossa paróquia
Qual a sua quebrada original e atual?
Sou também uma menina da quebrada. Nasci na favela da Ilha do Chié, mas depois me mudei para o bairro do Jardim Paulista, um bairro da periferia – uma área de construções populares do BNH (Banco Nacional da Habitação). As casinhas bem parecidas com aquelas do filme “Cidade de Deus”. [Atualmente Betânia vive em Frankfurt am Main, na Alemanha, e é autora da coluna "Vozes da Diáspora" na revista Carta Capital.]
Como você vê a migração?
Se a gente parte do princípio de que a migração é um fenômeno da mobilidade humana, essa capacidade de se expandir, então todos nós temos histórico de migração. Migrações forçadas, também, que no nosso caso como afrodescendentes tivemos os nossos ancestrais arrancados de suas terras.
Qual foi a sua história de migração?
Eu me formei em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Fazendo um estágio atrás do outro, fui convidada para ser a diretora do meio ambiente do município de Moreno no quarto período da universidade. Ao lado dos estudos estive sempre no trabalho, na militância.”
Foi nesse período da vida que você encontrou uma história de amor e conheceu o alemão Edgar Schröder, certo?
Edgar era um estagiário na Cooperação Técnica Alemã, em Recife. Nos conhecemos por conta de uma amiga que me pediu para encontrar com ele. Foi uma tarde muito legal, mas eu não o achei simpático, achei ele muito chato. Mas depois, começamos a conversar e ele me contou que estava estudando o processo de urbanização de favelas para o mestrado dele. Ele estava fascinado com a lei de integração das chamadas “cidades formais e informais”. E foi dessa vivência que nasceu o primeiro entendimento com as questões que a gente estava lidando. Eu tinha contribuído com uma pesquisa de dez anos da avaliação dessa lei e nosso encontro começa a partir disso.
A gente teve muitos almoços para falar de urbanização, e somente no quinto almoço foi que ele me chamou para ir ao cinema. No dia, eu cheguei duas horas atrasada e mesmo assim ele estava lá, no ponto de ônibus que a gente tinha combinado. Desde a história dessa noite a gente nunca mais se largou e foram 16 anos de casamento que foram interrompidos somente com a morte dele por câncer.
A gente passou dois anos com namoro à distância. Até que eu estava de férias na Alemanha, em 2001, quando nos casamos. Nos casamos na Dinamarca, por conta de a burocracia não ser tão complicada.
[Edgar foi contratado pela Cooperação Técnica Alemã na Turquia e Betânia, que ainda trabalhava como diretora do meio ambiente, precisou de um tempo, mas acreditou no poder do amor. Também se mudou para a Turquia, em 2002 — ela com 27 anos e o marido com 30. O que marca a trajetória de Betânia é o respeito pelos territórios e pela diáspora. Antes de se mudar para a Turquia, ela foi em uma mesquita em Recife e estudou a cultura, os costumes e as tradições religiosas islâmicas do país que ela estaria se mudando.]
Angola e Bósnia e Herzegovina
Betânia apostou na relação, entretanto não abandonou a vida que havia construído antes de conhecer Edgar. Entre 2002 e 2004 ela estudou ciências sociais na Universidade de Hamburgo, focando em migração e nos estudos pós-coloniais. “Não tinha as melhores notas, até mesmo por conta da língua estrangeira, tive muita dificuldade. Mas o que marcou a minha biografia foi esse conhecimento aplicado no trabalho técnico que realizei para a Cooperação Técnica Alemã.”
Pode-se dizer que o histórico de migração advindo da família foi também um impulso para que Betânia se mantivesse em movimento. Ela foi realizando diversos estágios e trabalhos de consultoria até que em 2005, em busca de oportunidades em um país lusófono, ela foi parar em Angola, onde trabalhou até 2009. Começou como estagiária, se tornou consultora externa, até chegar ao cargo de especialista.
“Você tenta imaginar chegar em um aeroporto e se deparar com um espaço onde só tem pessoas negras, desde homens de terno e gravata, chiques mulheres, até um engraxate. Uma paisagem muito uniforme. É uma experiência de reconhecimento muito linda. Recomendo a todos”, diz ela.
E as histórias de migração por conta do trabalho especializado não param por aí. Em 2011, Betânia foi para a Bósnia e Herzegovina e em 2013 voltou ao Brasil. Nos dois países ela realizou trabalhos especializados de consultoria externa.
Extratos dos textos de Betânia falam sobre sua relação com o estrangeiro
“Se no Brasil somos vistas como 'privilegiadas', pela 'sorte grande' de termos 'chegado lá', aqui somos diluídas à condição de 'migrantes', com toda a pertinente hierarquização destes corpos 'estranhos”', à mira do racismo e do preconceito cotidiano, numa sociedade que constantemente nos estrangeiriza”.
Trecho da coluna de Betânia para a Carta Capital (Ser negra no estrangeiro).
“Confesso que me pergunto como protejo meu corpo preto, meu sotaque brasileiro que me arremessam na mira desse medo. Sei que posso contar com a solidariedade explícita de pessoas e organizações antirracistas, mas isto não me preserva da violência racial no cotidiano. Quando fui chamada de 'migrante de merda' no trem ou ao apalparem minha vagina diante do meu filho no controle de segurança do aeroporto, não contei com qualquer gesto solidário. Sozinha estava com a memória coletiva dos abuso físicos da escravidão, dos experimentos eugênicos etc. Sozinha fiquei. Como me resguardo tendo em vista o aumento do racismo?”
Trecho da coluna de Betânia para a Carta Capital (Moria também sou eu).
Um mundo para a quebrada
A vida de Betânia Ramos Schröder sempre foi uma vida política e de impacto social. Além da coluna “Vozes da Diáspora” para a Carta Capital, ela está comprometida com a visibilidade do trabalho em rede das mulheres afro-brasileiras no Brasil, na Alemanha e na Europa.
Em 2019 ela co-organizou redes de mulheres negras brasileiras na diáspora europeia e publicou o livro “Marielle Francos Vermächtnis und die diasporischen afrobrasilianischen” (O legado de Marielle Franco e a diáspora afro-brasileira).
Atualmente, você pode conhecer mais do trabalho de Betânia em seu perfil pessoal @betania_ramos.schroeder e encontrar os conteúdos riquíssimos que ela publica e cura para o portal Pensar Africanamente, espaço esse onde são debatidos os temas de negritude, migração e diáspora.
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