Machado pra geral
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"Dom Casmurro...De quem é esse livro aqui?", questionei na ida para o banheiro. "Esse livro aqui é do Bruxo do Cosme Velho, Eduardo", me respondeu Lázaro, professor da quarta série, antes que pudesse sair da sala. "E sabe o que é melhor? Ele era negro, assim como eu".
Desisti de sair na porta. Quem seria "bruxo" e por que no Cosme Velho? Era negro mesmo? Como ele sabia? Fiz questão de puxar a cadeira e ficar na mesa tirando essas dúvidas. "Curioso do jeito que você é, se eu fosse você, ia até a biblioteca e pegava um pra ler".
E lá fui eu, carregando na cabeça uma série de indagações a respeito do autor e da obra. Me recebeu no ambiente literário a querida Helena, perguntando o que estava a fazer ali e naquela hora, no meio da aula. "Vim pegar um livro. Posso?", respondi, "Dom Casmurro".
"Nossa! Por querer próprio ou alguém indicou?", interrogou a bibliotecária. "Por querer próprio".
Não sei se ela achou cedo a leitura, pelos 11 anos que tinha à época. Talvez pudesse acreditar que não teria capacidade suficiente para entender os escritos do autor. Ainda assim, não titubeou. Passou a mão em uma das prateleiras, fez o cadastro e colocou em minhas mãos. Com o exemplar debaixo do braço, voltei à sala, ostentando o feito ao professor, como quem quisesse passar a mensagem de que agora conviveríamos, eu e ele, com as mesmas histórias.
O mar abriu-se ao final da viagem. Eu não queria só reler, como ler outros, ler mais. Ia trocando com o mestre em sala sobre aquilo que os textos me suscitaram. Quanto mais devorava os livros, mais forte e maior era o desejo em aumentar a lista.
A sequência não me deixa mentir: aos 12, José de Alencar e, no mesmo ano, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Castro Alves. Já com 13, Joaquim Manuel de Macedo e Bernardo Guimarães. E até hoje tem sido assim, e é bom que continue.
Na última semana, um post no Twitter fez com que diversas pessoas pautassem que as obras tidas como "clássicas" do romantismo e do realismo não poderiam ser lidas durante a adolescência, quando na verdade, o problema é outro.
No cerne da questão, faltam facilitadores, como Lázaro e Helena, para que a estrada da leitura possa ser possível a partir de uma mediação. Imagine só: sendo, eu, jovem periférico e favelado, qual seria a oportunidade de ler senão aquela na escola? Quando é que eu poderia comprar, com o meu dinheiro, um livro? Não é sobre o adolescente não entender, é sobre não ter com quem navegar junto.
Num país onde se perdeu, nos últimos quatro anos, mais de 4,6 milhões de leitores, segundo dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, um dos sintomas é o sistema educacional desatualizado, que não sabe apresentar livros, sobretudo à juventude.
Para toda leitura, é preciso se fazer apreender para aprender. Livros não podem - nem devem - ter contraindicação etária, nem de gênero, cor ou classe.
Aqui relembro o conteúdo dos artigos 26 e 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que contemplam especialmente o direito à educação, e ainda o artigo 215 da Constituição Federal do Brasil, que diz:
"O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."
Cabe aos gestores da Educação pensarem nisso, e também nós enquanto sociedade civil. E dá-lhe Machado pra geral!
Em tempo: conheçam as iniciativas feitas por Jota Marques, no Twitter, com a bela biblioteca na Maré; o Palco da Vida, em Olaria; a sagrada Cooperifa, no Capão Redondo, em São Paulo e a Bienal da Quebrada, de Mateus Santana. São eles alguns dos ''Lázaro e Helena'' espalhados por aí.
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