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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contra a bárbarie: vida

Musical "Vozes Negras - A Força do Canto Feminino" chega a São Paulo nesta quinta-feira (30) - Divulgação/Bernardo Cartolano
Musical "Vozes Negras - A Força do Canto Feminino" chega a São Paulo nesta quinta-feira (30) Imagem: Divulgação/Bernardo Cartolano

29/06/2022 09h32

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Sabe o que queria? Queria era falar da peça que vi no último domingo: ''Vozes Negras - A Força do Canto Feminino'', um espetáculo que vai além do que posso sentir ao me ver sentado no meio de um teatro após dois anos, imerso a uma plateia da qual não precisei fugir dos olhares, com receio de estranhamento, o medo de retaliação ao mais simples de gesto de carinho. Pelo pertencimento em ver equiparado o público, com seus diferentes tons de pele. Eu não sei muito reagir quando não sou vigiado por qualquer ação que faço sendo eu, o preto.

Mas não dá. Acordei pesado. Já nas primeiras horas da manhã da terça, dia em que escrevo a coluna, sete favelas do Rio tiveram como despertador o som das balas. Não, não eram as que adoçam a vida e sim as que tiram muitas delas. E não tava distante de onde vivo, poderia ser, inclusive, ali.

Resisto ao pensar na beleza dos cantos que ouvi, a dança dos corpos das meninas que fazem parte do balé, num culto bonito à ancestralidade tão marginalizada - apesar de professada, a solavancos, nos terreiros e cultos de candomblé e umbanda. A leveza da ginga é cortada rapidamente com a estratégia de manter-se vivo em meio ao confronto e barulho dos helicópteros, sobrevoando sem parar as cabeças de quem estava dentro dos barracos.

Tento sorrir relembrando da bela atuação do elenco que, àquela apresentação, deu vida a três trajetórias brilhantes de lugares onde brota potência: Tati Quebra Barraco, Ludmilla e Iza, e que a partir da música, fazem ofício de dias melhores e possíveis, indicando amanhãs e possibilidades para meninas que sonham estar no palco. Mas como dizer a elas que se é possível sonhar, se nem sair de casa rumo à escola teve êxito? Na Maré, 35 unidades escolares suspenderam as aulas ontem.

Ao lembrar das músicas e a banda que fizeram ensaiar passinhos mesmo sentado, a sensação de impotência no choro de quem teme ser o próximo alvo, numa guerra…Pera. Guerra não. Guerra é quando se tem dois lados em confronto. Nesse caso, apenas um em ação: o Estado. Justamente ele, responsável por proteger e guardar os cidadãos, optando mais uma vez pela contrariedade do que se pede pela mais alta Corte.

Isso tudo ocorrendo em um dia em que seria realizada uma audiência pública onde a sociedade civil poderia apresentar pontos para um Plano de Redução da Letalidade em operações policiais no Rio de Janeiro, como determinação da ADPF 635, conhecida popularmente como #ADPFdasFavelas. Nela, a reunião de organizações de territórios para garantia dos direitos de quem vive nesses locais.

Morro do Dendê, Guarabú, Serrinha, Pedreira, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e Nova Holanda, lugares mirados como passíveis de não tranquilidade, em mais uma terça. Enquanto noutros, o som dos pássaros poderia ser ouvido com uma clareza desconcertante, tal qual a força do timbre das atrizes que ouvi ecoar na peça.

Tudo isso fechando um raio de semana - e mês - difícil para o país, onde se reiterou (quase que a fórceps) o direito das mulheres para a livre escolha de seus ventres, asseguradas por políticas públicas que deveriam estar longe do debate conservador-religioso. E que se imposta a camada racial, ganha contornos ainda mais profundos e tristes.
Oxalá permita, quero ver no palco ainda mais vezes e com mais pulsão a beleza estonteante de minha História e cor, trazida e contada pelas mãos de quem a coloca no mundo. Sem que tenha que ser atravessado por tantas e tantas tristezas, tentando apagar momentos felizes. Afinal de contas, ser feliz e alegre também é antídoto contra a barbárie

Em tempo: Vozes Negras estreia em São Paulo. Seis semanas. Vá.