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Ilê Aiyê: Como um bloco de carnaval pode ajudar no combate ao racismo
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Não dá pra duvidar. Quando ele surge, é só ele, como se fosse (e é) um grito de Liberdade, e não apenas em referência ao bairro onde foi criado. Mas sim pelo teor do que tocam seus tambores, batuques, toques, preenchendo nas letras as lutas e progressos para a maioria da população - que é negra.
Assim, há 47 anos, o Ilê Aiyê, bloco afro mais antigo do Brasil, faz seu jogo e coloca-se no campo como uma das estruturas mais pungentes para a igualdade racial no país.
Especialmente para a coluna, pude conversar com o produtor artístico Sandro Teles e o músico Antônio Carlos Vovô, fundador e presidente do bloco, uma das maiores sínteses do antirracismo.
No papo, reflexões do passado que se dão no presente, durante a realização da turnê "Ilê Aiyê: Que Bloco é Esse?", comemorando por seis cidades brasileiras a força musical e a explosão estética do afoxé que revolucionou a Bahia, o Brasil e o mundo.
Ecoa: Qual é a sensação de ser "O Mais Belo dos Belos" há 47 anos?
Vovó: Isso é muito gratificante. Quando criamos o Ilê Aye, se ouvia que nada na liberdade vai pra frente, que as coisas são muito feias, em referência ao povo negro. Com o surgimento do Ilê Aye, nós conseguimos dar essa reviravolta, fazer com que o próprio cidadão negro e cidadã negra começassem a se reconhecer, ter orgulho, se achar bonito, né? Valorizar uns aos outros através do Carnaval, esse grande espetáculo, que nós recebemos esse título de um compositor.
Eduardo Carvalho: O Ile Aiyê nasceu não só como bloco, mas também como uma importante união de resistência em períodos de ditadura militar - e até por isso mudaram de nome. Vocês veem alguma semelhança com os dias atuais?
Vovó: Rapaz, não mudou muito não. Todo dia é uma batalha. Muitas coisas nós conseguimos resgatar, estava lembrando aqui que quando Moreno Veloso fez aquela canção "Canto de Afoxé para o ilê Aye", onde canta "Ilê Ayê, como você é bonito de se ver?". No dia a dia, no geral, principalmente aqui em Salvador, ainda existe um apartheid muito grande. Nós avançamos, começamos a ter mais liberdade de estética, educação, mas sempre em busca, temos pessoas capacitadas em tudo. Mas quando você vê a fotografia, ela ainda é toda branca. Na essência do poder, o negro ainda é vilão.
Sandro: Uma coisa que a gente nota ainda é o seguinte: lá em 1974, apesar da gente viver numa ditadura militar, o racismo ainda era velado. A ditadura passava pro mundo que nós vivíamos numa democracia racial, mesmo sabendo que não. E hoje as coisas estão mais abertas, os racistas, a partir de um presidente que lhes dá voz, eles se apresentam, se mostram, dizem que são, e a gente hoje consegue lutar contra o inimigo que a gente pode vê, diferente do que a gente via ali.
Eduardo Carvalho: É interessante pensar que vocês tomaram como inspiração às lutas pelos direitos civis estadunidenses, por movimentos como o do Black Power e dos Panteras Negras, além das guerras de libertação contra o colonialismo na África. É sempre do passado que falamos no presente?
Vovó: Sempre há essa coligação, não conseguimos nos desvencilhar do passado. As coisas continuam, e o Ilê deu essa guinada aqui, que despertou o surgimento de outras entidades. Na década de 70 os negros se reuniram, a juventude negra, os indígenas. Em 1976 já tinha um segundo bloco; em 1979, Olodum, Muzenza.,, O próprio Ilê deu ponto de partida para Moa do Katendê criar o Afoxé Badauê, uma instituição carnavalesca mais voltada pro terreiro, pro candomblé. E o elemento que utilizamos para isso foi a música, pelo discurso, ela começou a ecoar nos ouvidos, a acontecer esse levante.
Sandro: A música que é feita na Bahia hoje tem essa característica do que era e é feito pelos blocos afros. Na época, nas décadas de 70, 80 e 90, essas pessoas iam para os ensaios pra ver e a partir dali, criaram a base percussiva do axé music. No início, muitos deles gravaram músicas dos blocos afros, como Daniela Mercury, Banda Mel, Reflexus, Ivete Sangalo, todas cunharam suas músicas através dos blocos afro. É de muita importância o trabalho artístico que foi feito.
Vovó: Interessante que, depois que criaram o Axé Music, começaram a bloquear a música afro dos blocos. As rádios baianas tocavam, mas muito poucas; e quando criavam os blocos de trio, também impediam a entrada de pessoas negras. Mesmo se fossem brancas, se não morassem nos circuitos deles, não entravam. Negro, nem pensar. Você vai ver, muito com essa crise, esses blocos recheados de pessoas negras. E não se tocam, não é proibido, mas precisa-se ter discernimento.
Sandro: A gente faz uma música de conscientização da história do negro, da luta, é isso não é interessante pras gravadoras e rádios, que seja disseminada entre a população.
Vovó: O racismo é muito bem orquestrado, né? Sabem que se essas músicas fossem executadas com mais frequência, a revolução estaria muito mais próxima. Então tem consciência disso.
Eduardo Carvalho: Nesse sentido, você avalia que mais grupos afros poderiam surgir por conta da militância negra no Brasil?
Vovó: Aqui no Brasil existem muitos blocos, e o trabalho vem na percussão, dos tambores, no mundo inteiro. Esse resultado é visto no verão, quando uma série de pessoas vem pra Bahia, e vê, por exemplo, a banda Obatalá, que consome, contribui muito. As pessoas fazem que não estão percebendo isso, a importância. Por outro lado, é tão perverso que nem todos conseguem manter o que o Ilê Aiyê faz, de ser só um bloco grande de pessoas negras. Nós temos uma teimosia: o Ilê só canta música própria e percussão. Não temos piano, guitarra, está tudo concentrado na percussão. Isso também é um elemento de luta, traz problemas. Nós somos taxados de fazer "racismo reverso". Nós que sempre fomos mandados a procurar nosso lugar, quando achamos, eles querem invadir.
No Carnaval, mantemos essa tradição. Agora nos projetos sociais, você vai encontrar de tudo.
Sandro: Criar novos blocos afros também vem a ser uma discussão geracional. É uma geração quem passou, que teve influência dos Estados Unidos, movimentos black, das lutas de resistência que aconteceram na África, e tinham na cabeça. E hoje, pelo o que vejo na juventude atual, não vejo muita essa vontade de criar entidades, novos blocos.
Eduardo Carvalho: Qual é o impacto disso? Vocês criaram uma escola comunitária, cadernos sobre a história negra?
Sandro: Tem um impacto na conscientização da negritude, feita com essa finalidade, de tentar conscientizar nossos seguidores e amantes, através da música percussiva do toque, do tambor. Nossos compositores compõem letras belíssimas sobre valorização, sobretudo da mulher negra, a contação da verdadeira história da África. Tem um impacto educativo, a gente sempre luta e passamos pra frente.
Nós mantemos três escolas, a trancos e barrancos. A pandemia fez a gente parar um pouco, mas com fé em Deus, em 2023, vamos voltar com força. Temos a escola de Ensino Fundamental I, a escola Band'erê, que é de arte e educação e a escola profissionalizante. A música acaba sendo uma ferramenta didático-pedagógica. A gente tenta trabalhar isso em sala de aula, além do currículo normal e formal, falando de uma específica temática quando falamos de países africanos, quando falamos das revoltas, até mesmo com músicas de outros blocos.
Eduardo Carvalho: E antes que esqueça: como um bloco de carnaval ajuda no combate ao racismo?
Vovó: Foi um bloco de carnaval que deu essa alavancada aqui contra o racismo. Aqui em Salvador, na Liberdade e foi pro mundo. Tem que ter atitude, respeito, tem que se gostar. Quando falamos do início da revolução, nosso exemplo vinha da estética, da calça, do cabelo, pelas roupas coloridas, os dreads, mesmo com a polícia perseguindo. Sempre batemos de frente. Na face da opressão, batemos de frente. É isso, essa atitude, é que quero que a juventude assemelhe e dê continuidade. O Ilê está aí, vida longa, mas temos que principalmente ter a juventude como assumindo o papel. Tem uma música de Nelson Rufino, feita pro Bloco Orunmilá, que diz: "Vai ficar melhor, é só dar mais um pouco na cultura". E eu acrescento: na educação. Se a gente assumir nossa questão cultural e estudando, nós vamos ter essa reviravolta. Nós precisamos parar com essa coisa de "ah não quero saber de política", mas não podemos estar fora da decisão. Se essa juventude negra não começar a se interessar, e nós negros não começarmos a votar nos nossos e sempre no inimigo, vai continuar, não vai mudar nunca. Agora o papo é o negro e o poder.
O espetáculo "Ilê Aiyê: Que Bloco é Esse?" poderá ser visto no Rio, nesta quinta-feira (15), no Circo Voador. E no domingo (18), em São Paulo, no Cine Jóia. Para saber mais, clique aqui.
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