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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mundial do Qatar deixa legado vazio; já outra 'Copa' marca golaço no Brasil

Torcedores do Brasil cantam durante a partida entre Brasil e Suíça pela Copa do Mundo do Qatar - Maddie Meyer - FIFA / Colaborador
Torcedores do Brasil cantam durante a partida entre Brasil e Suíça pela Copa do Mundo do Qatar Imagem: Maddie Meyer - FIFA / Colaborador

Edu Carvalho

Colunista do UOL

30/11/2022 06h00

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Na semana passada, descrevi aqui em Ecoa a ação de apagamento das áreas mais pobres de Doha, no Qatar, por meio de muros, como símbolo palpável e nítido da omissão e descaso frente às populações mais vulneráveis. O que para um carioca não surgiu como ''novo'', por já ter visto essa atitude de apagar favelas em eventos em que o Brasil e Rio de Janeiro foram sede.

Pelas semelhanças, passei a refletir de maneira mais profunda sobre os pontos de intersecção entre os dois locais que, embora distantes, são e estão unidos a partir da falta, especificamente a dos direitos humanos.

Nos últimos dias, o Conjunto de Favelas da Maré foi mais uma vez palco do extremo horror, onde o maior e inegociável direito a vida foi colocado à prova. Segundo narra o Maré de Notícias, a operação que reuniu Polícia Militar e Polícia Civil gerou ações truculentas, além de oito mortes e diversas violências com moradores.

O episódio se dá dias antes de uma outra Copa, mas de literatura. É a Maré o local que recebe a Festa Literária das Periferias, a Flup, antes conhecida como Festa Literária das Unidades Pacificadas, em relação ao projeto higienista organizado pelas UPPs. Mas que, diferente da UPP (que ampliou a insegurança e negligenciou o território sob uma política de segurança malfadada), virou elemento de encontro, pertencimento e reconhecimento entre os moradores favelados, sendo um evento que resgata e reúne os criadores locais para compartilhamento de suas artes.

''A falta tem dois significados possíveis quando a gente fala de poesia e futebol. Existe a da ausência, o que não está. E a outra pode ser o Estado Brasileiro, particularmente o carioca, que não estão nas favelas e que quando está, ele entra cometendo faltas. Entra duro, batendo na canela, com armas, com caveirões, com pés na porta das casas'', reflete Julio Ludemir, um dos organizadores do evento.

Segundo ele, a Flup presta uma ode à periferia e a liberdade - o que não pode ser visto nem aqui, tampouco no Qatar - indo além do sentido de território. ''Não importa se esteja em guerra, em paz, se esteja em tristeza, alegria, a gente sempre se confirma nas favelas''. E que para ele ganha densidade quando se observa os atores que formam esses lugares.

Na poesia, existem diversas formas de vê-la se concretizar. Seja no Slam Queer (com participação de pessoas LGBTQIAPN+), no Poetry Slam (ligado à resistência da mulher e mulher preta) e moradores periféricos.

O ganho é um só quando se utiliza da literatura para fazer frente à violência: ''Um país que acabou de sair de uma campanha onde se falou de mais livros e menos armas, estando levando artistas como Jessé Andarilho, Mariene Felinto, Conceição Evaristo. Nós chegamos nessa Maré que habita o noticiário de policiais, caveirões, armados no pensamento. É nesse momento que reafirmamos essa política de 'livros sim, armas não'". E nesse placar, não há como mensurar o número de gols, já que não se existe guerra quando se tem nas mãos, livros.

Talvez esse seja o legado deixado pela Copa das Palavras e Letras, organizada pela Flup e justamente aqui. Já a que acontece no Qatar, não se sabe o legado - ou imagina-se. Apenas os referidos à mortes de imigrantes, mulheres, trans, o aumento da desigualdade e ampliação do não direito. Enquanto curtimos os jogos e vibramos. Traz o Hexa, Brasil.