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Eduardo Carvalho

REPORTAGEM

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Vítima de fake news, Raull Santiago diz: 'Despertaram o que sempre existiu'

Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão - LUCAS LANDAU
Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão Imagem: LUCAS LANDAU

Edu Carvalho

Colunista do UOL

22/01/2023 06h00

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É comum escutar a frase "não sabendo, foi lá e fez'' para alguém que desconhece seus limites e alcance, e que fez algo sem esperar.
Mas com ele a parada é outra. Raull Santiago, ativista social e morador do Complexo do Alemão, sabe e faz. Roda o país falando o que muitos precisam saber sobre a realidade periférica e favelada que marca sua vida.

"Ser ativista é um processo cansativo diante da lentidão que o Brasil se desenvolve. É uma lida diária com poucos avanços reais e centrais", afirma. Mesmo após ser vítima de uma enxurrada de ataques por causa de uma fake news - bolsonaristas espalharam mensagens mentirosas, relacionando Raull como os atos terroristas em Brasília -, ele não deixa a peteca cair.

"Eu sou um esperançoso a partir da realidade do que faço e vejo na periferia'', diz em entrevista exclusiva à coluna.

Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão - LUCAS LANDAU - LUCAS LANDAU
Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão
Imagem: LUCAS LANDAU

Edu Carvalho: É um peso ser ativista social?

Raull Santiago: Eu não diria que é um peso ser ativista social, porque é uma das coisas que me motiva, que me move, faz parte de quem eu sou.

Acho que existe uma realidade de desigualdade e avanços tão lentos no Brasil que isso se torna cansativo. É uma lida diária com poucos avanços reais e centrais, com uma possibilidade muito grande de retrocesso, como a gente viu no último governo.

Ser ativista é um processo cansativo diante da lentidão de como o Brasil se desenvolve no campo da consciência crítica e também na garantia de direitos para todas as pessoas de verdade.

Edu: Pelo seu trabalho e reconhecimento, você alçou voos maiores. Como ampliar a visibilidade do que importa para além do seu território?

Raull: Ampliar a visibilidade do que importa é a grande missão diária de quem faz trabalhos como os que eu faço, como o Rene Silva faz, como tantos outros fazem. A gente usa dos meios diversos que a gente encontra, e no meu caso, as redes sociais, a Internet são ferramentas centrais para disputar narrativas que reduz danos e constroem possibilidades para quem vem da realidade da qual eu venho.

É uma lida diária muito difícil, porque a sociedade ainda carrega muitos estereótipos e preconceitos, o racismo ainda é presente na maioria das relações.

Eu uso as estratégias de ocupar esses lugares e a partir disso construir relações e parcerias que carreguem um outro olhar de quem vem das favelas e periferias. Mas não olhando como espaço de decadência, violência, e sim como um espaço onde os direitos mais básicos não são garantidos amplamente, e que é preciso construir uma outra ótica, uma outra prática com quem vive nas favelas e periferias.

Elas são os centros dos processos, estão diretamente ligadas a funcionalidade diária é real da sociedade como um todo. É preciso valorizar essas pessoas, são elas que movem a engrenagem de vivência quando a gente pensa a rotina de trabalho no Brasil como um todo.

Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão - LUCAS LANDAU - LUCAS LANDAU
Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão
Imagem: LUCAS LANDAU

Edu: O que as redes sociais significam para você e como isso é captado pelos moradores do Alemão?

Raull: As redes sociais são um ponto de transformação na minha vida enquanto indivíduo e também no coletivo, porque hoje a maioria das coisas que alcancei passam por elas.

É uma retroalimentação diária entre o fazer off e a rede social como uma ferramenta de impulso para divulgar o que estamos fazendo.

E no meu caso, sendo do Complexo do Alemão, as mídias têm significado central na possibilidade de ampliar a voz, de nos tornar uma pessoa pública e mobilizar as estruturas no campo da sociedade.

Elas dão um novo caminho, uma nova perspectiva, um novo horizonte sobre a realidade periférica. O Alemão usa isso de forma estratégica: temos o Coletivo Papo Reto, veículo que faço parte; tem o Voz das Comunidades, tem o Mulheres em Ação; mas também em outras partes: o Fala Roça, na Rocinha, o Fala Akari?

Muitas vezes as representações oficiais de quem vinha das favelas, das periferias, da negritude, não estava presente na imprensa "comum". Não tínhamos nossa voz representada, era uma coisa de fora pra dentro, muitas vezes com uma ótica estereotipada. A gente olhava pra TV, no rádio, e não nos víamos representados no que era passado.

As redes sociais puderam ser esse espaço de disputa de narrativa como um todo na hegemonia da comunicação pra construir, apontar novas vozes e falar em primeira pessoa sobre a realidade que só quem é cria pode conhecer.

Edu Carvalho: A favela é criminalizada historicamente. Recentemente, você foi alvo de mais uma ação de bolsonaristas após os atos de 8/1. Como lida com isso?

Raull: Não é a primeira vez que passo por um processo de fake news ou situações de alta exposição. Sendo cria da periferia, construindo avanços para essa comunidade de forma coletiva, a partir das redes, a imagem tornou- se alvo de quem discorda do que a gente faz ou tem desconhecimento da realidade do território.

Essa foi a primeira vez que algo 100% mentiroso foi compartilhado numa alta velocidade no Brasil como um todo sobre mim e pessoas que vivem a realidade.

No início do ano, usaram uma foto que tinha eu, o Preto Zezé, o Rene Silva e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. 'Alexandre de Moraes está com lideranças do PCC', falaram.

É uma fake, mas éramos nós na foto com o Alexandre. Contextualizaram de maneira mentirosa.

Agora, quando a gente pega o caso da depredação em Brasília, a realidade é outra. Eu não estava em Brasília, estava no Complexo do Alemão.

Duas das pessoas na foto nunca sequer foram à Brasília, mas foram apontadas como se tivessem ajudando na depredação.

É um contexto completamente mentiroso, diante da situação de polarização do nosso país. Mas lido de forma tranquila, com rede boa de apoio pra poder encaminhar isso.

Fizemos um boletim de ocorrência por conta dos danos diversos causados à imagem e ao físico. As pessoas precisam entender que não é legal ou correto pegar imagens assim, de maneira aleatória. Estamos abrindo processos indenizatórios contra várias dessas pessoas, que vão desde perder trabalhos até risco direto às pessoas envolvidas.

Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão - LUCAS LANDAU - LUCAS LANDAU
Retrato do ativista Raull Santiago no Complexo do Alemão
Imagem: LUCAS LANDAU

Edu: Já houve algum ato de violência/assédio pessoalmente?

Raull: Normalmente os atos de assédio acontecem nas redes. São as mensagens privadas, na sua maioria de perfis fakes, mas também há um número de perfis comuns.

Diante da realidade do trabalho que faço, outras ameaças já foram feitas - on-line ou pessoalmente - por conta do trabalho que faço no campo e também em situações de ataque político, violência física.

Isso já fez muito mais parte da minha rotina, já que a minha rede on-line cresceu. É também uma ferramenta de proteção para que algumas coisas não cheguem com intensidade, por mais que a viabilidade não seja um bloqueador de ações diversas, visto o que aconteceu com Marielle. Mas acaba sendo um lugar de redução da sensação de liberdade para pessoas diversas atacarem on-line e fisicamente.

Edu: O que espera do Brasil em 2023?

Raull: Eu estou muito empolgado, esperançoso. Acho que a era que a gente viveu no período Bolsonaro é algo marcante negativamente para nossa geração, pra geração da minha idade.

A gente nunca tinha experimentado um caos tão grande, principalmente nas favelas como foi o bolsonarismo, onde o ficou mais explícito a homofobia, o corte de direitos, a fome.

A sociedade experimentou algo que jamais tinha experimentado, que foi a pandemia. A gente tinha um governo criminoso, desinteressado na presidência, o que trouxe situações ainda mais caóticas às favelas e periferias.

Essa virada de chave e o nível de esperança diante de tudo isso, a conexão maior está sendo construída. De mais reuniões, de possibilidades, de pressão direta. Isso me anima.

Eu não acho que a gente vai conseguir transformar o Brasil imediatamente, porque esses bolsonaristas e essas ações de ultra-direita despertaram um Brasil que sempre existiu, mas que ficava oculto, tímido, mas agora exposto.

A gente precisa investir muito em educação, em garantir o dinheiro das pessoas, enfrentar a fome, o acesso à água, solução para a crise climática e ambiental.

Tem uma série de trabalhos que precisam de uma dedicação extra, com foco real, para que a gente comece a transformar o Brasil.
Não é impossível, mas também não é imediato diante da realidade atual que o país se encontra.

Eu sou um esperançoso a partir da realidade do que faço e vejo na periferia, construindo suas próprias soluções, acredito que os passos são lentos numa sociedade onde a educação crítica não é acessível a todas as pessoas, onde a desigualdade e as fakes constroem os processos de informação e opinião.