Eduardo Carvalho

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Opinião

Davi do BBB: 'Quero abrir cursos técnicos para jovens da periferia'

Parecia estar dado como certo, desde o primeiro dia, que Davi Britto, homem negro de 21 anos e baiano de Cajazeiras, seria o vencedor do BBB24. Só que ninguém imaginava que sua força e dedicação, percebidas ao longo de quase quatro meses, tinham sido forjadas numa outra espécie de sala de aula: as ruas.

Aos 11 anos, após a mãe perder sua lojinha e os pais se separarem, o então menino foi levado a segurar as pontas - realidade comum às camadas mais vulneráveis do Brasil. Não sabendo, foi lá, pegou um balde vazio, pediu a benção ao seu pai e rumou com R$ 15 no bolso para a região da Lapa, no centro de Salvador, em busca de colocar em casa, antes mesmo do feijão e o arroz no prato, o gás de cozinha. Até o milhão chegar, teve muita lata d'água na cabeça e picolé derretendo, além de outras bugigangas.

Nesta entrevista, não há outro Davi, diferente do que você vê em notícias espalhadas em Splash UOL ou outros sites, mas, sim, exploradas pela primeira vez, suas vontades e desejos de quem por muito tempo não pôde sonhar. Hoje, milionário, aproveita as regalias, afrouxando também o peso que carregou por toda uma vida. Agora ''estável'', Davi planeja tirar do papel o curso de medicina, informação tão trabalhada por ele durante o período do reality; além de investir na carreira de empreendedor, sem deixar de lado o carisma que o fez ganhar a edição de um dos programas que são o 'xodó' do Brasil. Já há conversas com a TV Globo de um projeto frente às câmeras. Se toparia fazer algo que envolvesse a cozinha? ''Na hora! O Tempero do Davi''. Já pensou, Ana Maria?

Edu Carvalho: Como é que foi a tua infância?

Davi Britto: Eu queria estar estudando, queria estar fazendo outra atividade, queria estar jogando bola. Às vezes, eu passava num 'buzu' ali, enquanto ia pra Lapa vender água. Passava de tardezinha, queria estar ali jogando bola, brincando. Queria estar fazendo aqueles carrinhos de rolimã, pra descer a ladeira correndo, jogando pra ir na casa do vizinho. Brincando, sabe? Me divertindo, fazendo minha infância. Eu não tive essa oportunidade. Foi uma infância muito sofrida. E eu passei, né? Eu tenho 21 anos de idade. Tenho uma história muito de vida mesmo.

A mãe não podia trabalhar, eu tinha que sustentar a casa. Já vendi água pequena na Lapa, já andei no meio de traficantes, no meio de muita gente ruim. Mas nunca me envolvi em nada de errado. Tudo isso só pra poder ganhar mesmo o sustento, o negócio de ir pra casa, trabalhando e vendendo. Nunca me envolvi com nada de errado, graças a Deus. Sempre fui uma pessoa direita. Sempre fui uma pessoa que procurou trilhar os caminhos certos.

Corri atrás. Lutei, batalhei e consegui alcançar as coisas pequenas. Muitas pessoas hoje olham pra mim e falam assim: ''Pô, você é um cara muito maduro e vivido'', mas é porque eu já passei por muita coisa na vida. Com toda a luta e mantendo sempre meu foco no objetivo, consegui chegar aqui. Graças a Deus, hoje eu me sinto uma pessoa financeiramente bem. Estou conseguindo dar o melhor pra minha mãe, para o meu pai, pra minha irmã, pra minha família, todos que estão ao meu redor.

Você sente que agora vai poder fazer as coisas que não pôde durante a infância, que não teve acesso? Sente que agora pode respirar na piscina com a ponta do nariz pra cima, pelo menos?

Pô, agora com certeza! Tem até uma piscina aqui em casa (risos). Graças a Deus, dá pra agora respirar, agora dá pra botar uma boia ali e tomar um banho. Muita coisa que eu não pude fazer pequeno, hoje, com fé em Deus, com toda certeza eu vou fazer, né? E eu tô fazendo. Quero sempre dar o melhor pra minha mãe. Foi até uma frase que eu falei no final do Big Brother. Tardei um dia de novo pra falar essa frase quando eu tava campeão. Minha mãe tava vendendo limão na rua, né? E, assim, ela vendendo limão, eu falei pra ela que um dia eu ia ser doutor, que um dia eu ia dar o melhor pra ela. E pela vida que a gente tava levando? Olhando pelo que eu tenho hoje, mais maduro, ela olhou pra minha cara e me deu força.

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Hoje eu entendo. O que eu queria estudar quando eu era pequeno, eu vou estudar hoje. Se eu queria viajar quando eu era pequeno, hoje eu vou viajar. Tudo que eu queria fazer quando eu era pequeno, que eu não pude, que eu tive aquilo roubado de mim porque eu tive que ir trabalhar pra poder sustentar a casa, pra poder trazer o alimento, pra poder comprar roupa pra passar o Ano Novo, comprar um picolé com os amigos na rua, cortar o cabelo, pra tudo, a gente tem que trabalhar, né? Não tinha onde...

Tudo aquilo que eu não pude fazer pequeno, hoje, com toda certeza, eu vou conquistar, alcançar e fazer, em nome de Jesus. Que o meu maior objetivo também, na vida, é estudar, né? Que eu não tive essa oportunidade de ter o superior e eu quero concluir o meu superior, para ter meu certificado na mão e poder atuar na área que sempre quis, que é a medicina.

Você falando muito sobre o futuro e dos sonhos que agora vai poder realizar, o sonho de ser médico era porque você realmente queria ser médico ou porque não sabia jogar bola direito?

Eu entrei porque eu amei o futebol, mas não deu certo. Mas sempre falavam "vai lá, faz a bola no gol, faz a bola no gol que vai dar certo", mas não deu (risos).

São muitos talentos na periferia, só que, às vezes, eles não têm oportunidade de crescimento. O sonho da medicina eu carrego desde pequeno, mas, depois que eu vi a realidade da minha família no chão, na merda mesmo, ali no lixo, de armário vazio, aquilo todo dia me incentivava a querer melhorar, buscar algo melhor pra minha família. E o melhor pra quem é pobre são os estudos. Para quem não tem condições financeiras, tem que estudar. Meu pai sempre dizia: ''Você só vai crescer na vida se você estudar''. Hoje com a vida estabilizada, quero manter o foco pra alcançar aquilo que desde pequeno eu tinha vontade.

O que a Lapa significa pra você?

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A Lapa significa pra mim construção, ensinamento. Foi a primeira vez que tive contato com a rua, com a malandragem. Tem gente de todo tipo, gente de todo tipo. Ali transitam os ambulantes, mas todos os tipos de pessoas. Quando minha mãe perdeu as lojas, meus pais se separaram, meu pai desempregado, não tinha gás, a gente só tinha um balde e R$ 15. Lembro que meu pai me deu o dinheiro. Eu puxei o trabalho. Peguei os R$ 15, meu tio já trabalhava lá. Fiquei meio perdido como vendedor, não sabia como funcionava. Falei 'água', meio baixo, e o pessoal ficou olhando pra minha cara, meio assustado. Meus pés estavam sujos no primeiro dia. Cheguei em casa com R$ 24, tinha saído com R$ 15. Falei ''Meu pai, não consegui tirar o dinheiro do gás, mas amanhã vou conseguir''. Fui aprendendo a lidar com a vida ali, por mais que eu me afastasse do sonho de ser médico, ali era um dia de cada vez e como era a vida, estudar e alcançar um lugar melhor pra mim. Passei por lá de carro, parei e comecei a chorar. Foi ali que desbravei a vida.

Sente que sua escola foi a rua?

A rua realmente é onde tudo acontece. Eu chegava lá, do lado, eu jovem, novo, tinha pessoas usando drogas. Eu, novo, com 12 anos, vendo tudo na minha frente. Me chamavam pra usar, mas eu não aceitava. Passei por muita coisa naquela Lapa. Aprendi muita coisa. Fui pegando o jeito de desenrolar o positivo, como trazer o cliente para perto, empreendedor. ''Saia do deserto, pare de ser camelô, beba água''. ''Ô cliente, caiu aí no chão'', ele perguntava ''O quê?'' e eu ''O preço da água''. Vendi picolé, e derreteu tudo?Tudo isso me moldou. Se eu for ter um comércio, já sei como usar, aprendi na escola da vida. A vida ensina.

Você pensa lá na frente em fazer algo a jovens como você?

Sim, tenho um pensamento de lá na frente, oferecer cursos gratuitos, para jovens periféricos. Quero dar oportunidades a eles, de também olhar pra própria vida e eles também poderem dizer que podem chegar. Querendo ou não sou espelho pra sociedade hoje, pra população, um garoto de 21 anos. Sofri muito, mas consegui chegar até aqui. Eu acredito que eles podem chegar até aqui. Mostrei esse exemplo, e quero dar condições a essas pessoas que também são pretas, são pobres, que também são periféricas e correm atrás do seu sonho. Um curso que leve a eles ter uma vida melhor, uma estabilidade, cursos cursos técnicos que formem pessoas.

Podemos esperar ainda um Davi da TV, além dos negócios e dos estudos?

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Estamos analisando e estruturando da melhor forma possível. Eu ainda sou contratado da Globo e logo em breve virão novidades. Estamos fazendo na medida do possível, pra que saia em breve, mas ainda sem previsão. Fazemos alinhadinho, da maneira correta.

Se fosse pra escolher, talvez um programa de culinária ou quadro, você toparia?

Na hora! Ia fazer uma moqueca baiana, um cuscuz de manhã cedo...o 'Tempero do Davi'!

Agora você pode sonhar?

Claro! Não só eu, como a população brasileira, e correr atrás dos objetivos, que podem ser realidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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