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Neto de lavrador que combateu nazismo, diplomata negro conta o Brasil real
O besouro negro e redondo, seis patas a lhe sair do corpo, caminha noite adentro atrás de sangue. A casa de madeira, típica habitação da população pobre do Sul do país, apresenta paredes cheias de buracos - dormitório perfeito para o bicho barbeiro se aninhar.
No casebre paranaense, dormem pai, filha, mãe e filho. Os besouros chatos lhes sugam o sangue e o tempo de vida, inflando-se morte. Anos depois boa parte desta família desenvolverá o mal de Chagas, provocado pelo protozoário Trypanosoma cruzi presente nas fezes do bicho barbeiro.
Não será o caso, no entanto, do patriarca — o lavrador Joaquim Bueno Mendes. A roda da fortuna que premia pobres no Brasil inteiro com a doença que dilata seus corações não lhe presenteará com a morte premeditada naquela noite.
Joaquim Bueno Mendes foi um dos soldados brasileiros que participou da Batalha de Monte Castelo, na Itália, onde mais de 400 pracinhas perderam a vida. "Tenho muito orgulho do meu avô ter combatido o nazi-fascismo", me conta o escritor e diplomata brasileiro Krishna Monteiro.
"Meu avô era um homem muito pobre, nunca tinha comido chocolate até ir lutar na Itália. Nunca tinha comido tão bem quanto na guerra. Ele basicamente foi para guerra para comer."
Em nome do avô
"Meu avô foi a figura tutelar mais importante de minha vida", diz Krishna, autor do romance "O Mal de Lázaro" (Editora Tordesilhas, 2018) e do livro "O que não existe mais" (Editora Tordesilhas, 2015), finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos e traduzido para o francês em 2020, onde foi classificado como "barroco sul-americano". "
"Vovô voltou da guerra uma pessoa muito traumatizada e voltou uma pessoa com horizontes mais amplos do que ele tinha. Voltou uma pessoa mais carinhosa e menos dura.", recorda Monteiro que viveu os últimos anos na Tanzânia, em trabalho diplomático. Joaquim Bueno Mendes se faz presente no livro "O que não existe mais" no conto "Monte Castelo", que narra a luta dos pracinhas brasileiros contra os nazistas, que tentavam conter o avanço dos aliados rumo ao norte da Europa. Mas não só. "O que não existe mais" é um retrato nostálgico de um tempo que se perdeu na infância interiorana do autor. "Esse livro de contos foi um grande acerto de contas [com o passado], uma experiência integradora".
As primeiras lembranças da infância de Krishna, em Santo Antonio da Platina (PR) também são protagonizadas por Joaquim e parecem saídas de um dos livros de realismo mágico dos quais o autor tanto faz gosto:
"Eu tinha uns três ou quatro anos e estava no colo do meu avô, na rua. Todos os dias de manhã eu saía com meu avô para passear. Passou um enterro, uma comitiva, e eu não sabia o que era aquilo. Aí, meu avô se juntou àquela comitiva, com um bebê no colo, e foi seguindo até o cemitério. O caixão foi levado até a beira da cova e, quando foi aberto, lembro disso como se fosse hoje, tinha um velhinho lá dentro, com cabelos muito longos e muito brancos e uma barba muito branca. Aí, eu me desvencilhei da mão do meu avô, me aproximei desse velhinho, no seu caixão, e comecei a acariciar a barba dele, o rosto dele. [Estava] diante do grande mistério da morte que eu não sabia ainda o que era. Parecia, para mim, apenas uma pessoa dormindo."
O soldado e o diplomata
"Minha infância é basicamente marcada por morar no interior e pela mudança constante. Então, para mim, é natural me mudar. Talvez isso tenha influenciado um pouco a escolha da carreira diplomática. Eu não consigo me imaginar morando a vida inteira em cidade nenhuma."
Filho de pai mineiro, negro, e mãe paranaense, branca, Krishna passou a infância deslocando-se pelo interior do Brasil. "Aqueles dois enfrentaram muitos preconceitos para conseguirem se casar." Acompanhando o pai, funcionário do Banco do Brasil, Krishna morou nos estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Sergipe, Espírito Santo e Pernambuco.
"No sertão de Pernambuco, nossa casa ficava a poucos metros do rio São Francisco, aquele rio que parece um mar. A violência do sertão me marcou muito, assim como sua beleza. Havia uma feira livre, no centro da cidade, uma feira livre muito bonita, mas onde, depois da missa, aconteciam todas as 'vendettas' familiares da cidade. Então era um lugar que sempre tinha tiro, sempre tinha mortes. E um amigo meu, um colega de escola, morreu com uma bala perdida nesta feira livre. Foi nessa feira livre, também, que eu vi pela primeira vez uma briga de galos."
Apesar da origem pobre, o fato de sua mãe ter-se tornado professora primária e o pai ter estudado em seminário (após sentir "vocação para ser padre aos nove anos de idade"), fez com que a família Monteiro sempre tivesse livros em casa e, aos poucos, ascendesse socialmente para a classe média.
"Eles garantiram que meu gosto pela literatura fosse estimulado desde a primeira infância. Meu pai me deu várias coleções de Monteiro Lobato e de Júlio Verne, que eram autores que ele havia lido na infância."
Os pais eram fãs de literatura mais popular, best-sellers, mas tinham em suas estantes também obras de Hermann Hesse, "primeiro autor sério" devorado por Krishna que sonhava em ser escritor desde o ensino médio. Hesse, autor suíço-alemão interessado no budismo, foi uma das influências que introduziram na cabeça dos pais de Krishna o imaginário da espiritualidade oriental. Não à toa, o irmão de Krishna chama-se Sidharta.
O fato de mudar-se tanto de cidades acabou gerando em Krishna o que os alemães chamam de "Reisefieber" (febre de viagem), a excitação que precede a viagem. Se seu avô deixou o interiorzão para fazer a guerra, Krishna deixou o Brasil para buscar a paz. Tornou-se diplomata, profissão que aqui no Brasil ainda é pouco usual para um homem negro vindo de família pobre.
"É uma carreira de elite. Não tanto quanto no século XIX, quando os diplomatas provinham da aristocracia. Claro que em países sul-americanos, onde a elite é predominante branca, a diplomacia é branca."
Um Brasil profundo de dimensões épicas
Quando adolescente, Krishna descobriu o punk rock através de uma fita cassete emprestada por um amigo contendo pauladas sonoras de Ramones, Sex Pistols e Dead Kennedys. Na sequência, garimpou bandas nacionais, como Cólera, Inocentes e Ratos de Porão.
"Se a adolescência já é um período difícil, a adolescência no interior é um período mais difícil ainda. Como escritor, eu devo muito ao meu imaginário de pessoa do interior. Mas o interior também tem seus problemas, né? É um espaço mais conservador, mais arcaico".
De fato, hoje, o escritor Krishna beneficia-se do ambiente que angustiava, outrora, o jovem punk. Suas narrativas fogem, via de regra, dos grandes centros urbanos. Entre o realismo duro e a fábula recheada de metáforas, Monteiro convida seus leitores para uma jornada pelas diversas cidades em que morou durante a infância. Mesmo que seus cenários sejam todas essas cidades e não sejam, ao mesmo tempo, cidade nenhuma. "O não-lugar é universal", filosofa.
Grande admirador de Guimarães Rosa (uma das gemas de seu livro de contos, "As encruzilhadas do doutor Rosa", é protagonizada pelo autor de "Grande Sertão: Veredas" em um encontro com o diabo), Krishna explica que as dimensões épicas de sua obra não se devem meramente às suas influências literárias:
A realidade brasileira, por si só, já é épica. As histórias que nós escrevemos são histórias de um Brasil profundo com dimensões épicas. Toda história brasileira se dá em um ambiente extremamente patriarcal, extremamente arcaico e, em geral, é a história de alguém que está se opondo a esse ambiente hostil em uma tentativa de superação. Isso por, si só, já é uma narrativa épica.
Citando entre suas influências as fábulas contadas pela avó, que morreu com mais de 100 anos, e as obras de autores como Dino Buzzati, Gabriel García Marquez e Raduan Nassar ("o maior escritor vivo do Brasil"), Krishna destaca a importância das perspectivas animais e de personagens "não-humanos" em sua literatura. Em seu conto mais conhecido ("Quando dormires, cantarei") o protagonista é um galo de briga:
"Em geral, prefiro a companhia de animais que de seres humanos (ri). Sempre tive muitos animais quando era criança. Pegava cachorros abandonados na rua e levava para casa. Eu acho que animais são elementos simbólicos privilegiados para retratar a condição humana. Por exemplo, o galo de briga, do meu conto, é o galo de briga que vi morrer em uma feira livre do nordeste, mas também é uma metáfora para o herói trágico, para condição humana."
Acho que o próximo passo, para nós que somos escritores fora do centro, é deixarmos de reconhecer a existência de um centro. O Itamar Vieira Junior falou muito bem que toda literatura é regional. Por que toda literatura reflete a realidade de um lugar. Até mesmo a literatura que se supõe central é regional. Devemos parar de reconhecer um centro e ver a literatura como "pluricêntrica". Krishna Monteiro
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