Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"Todos são iguais perante a lei -- dependendo da sua cor de pele".
"Estão vendo? Devia ter matado", disse o tenente do batalhão de elite da polícia militar. "É como eu digo: os bandidos vão a júri e saem livres". E completou alisando o bigode: farto "Com bandidos a gente tem é que surrar."
Antes de revelar o autor da frase acima, preciso dizer que sou um jornalista que há tempos procura entender a violência que reina em nosso país. Para isso venho analisando dados, lendo pesquisas, conversando com especialistas e pessoas que estão no "campo de batalha". Acredito que a violência - ao lado da brutal desigualdade social - seja o principal problema do Brasil. Escrevo isso, mas não fecho os olhos para a raiva que todos amigos que são moradores de periferia, trabalhadores, que se apertam em ônibus lotados, sentem ao terem um celular, cuja prestação ainda está sendo paga, furtado no ponto de ônibus. A raiva que sentem quando um "nóia" pula seu muro, rouba as roupas do seu varal - e o que mais pode carregar - para trocar por uma pedra. Acho que a esquerda, nos seus últimos anos de poder federal, perdeu o contato com as ruas e não deu real atenção para os índices brutais de violência que explodiam no Brasil.
No entanto, voltemos às mal traçadas linhas iniciais deste texto. Das coisas que mais me chamam atenção sempre que escrevo sobre nosso país onde cerca de 60 mil pessoas são assassinadas todos os anos, segundo o Atlas da Violência 2020 do Ipea*, é o fato dessa violência brutal ser praticada em grande parte por agentes do Estado, especialmente contra as pessoas negras. Pessoas como Kathlen Romeu, jovem modelo grávida, assassinada em uma ação da PM do Rio de Janeiro semana passada.
Muitas vezes o uso extremo da violência em comunidades começa por agentes policiais que criam ciclos de vingança intermináveis. É o que o Capitão Pimentel, do BOPE (o Capitão Nascimento da vida real), chama de "uma guerra particular". Só que, inicialmente, eu achava que isso era um fenômeno iniciado com os Esquadrões da Morte dos anos 60/70, com a ditadura militar; uma coisa dos "nossos tempos".
Ao ler o excelente livro reportagem "Tenente Galinha - Caçador de Homens: Eu sou a lei!", para a pesquisa de "Desamparo" (Editora Reformatório, 2018), meu primeiro romance, descobri a história da "Captura policial" que rodava o interior do estado de São Paulo atrás de ladrões de gado e outros bandidos, geralmente ligados a crimes de patrimônio.
O que assusta na reportagem, lançada em livro nos anos 60, é descobrir que já entre 1888 e 1913 o método comum desse batalhão especial da polícia era matar os suspeitos sem julgamento, torturar os moradores de bairros pobres para que entregassem o que não sabiam, aceitar propina para não prender bandidos que prestavam serviços para coronéis, etc. Como um "Rota 66" do começo do século, o livro documenta vários crimes cometidos por um tenente altamente condecorado e que teve em seu enterro a presença de muitas autoridades do governo paulista. Além de mortes, torturas e espancamentos, seus crimes abrangem dezenas de casos de abuso sexual e uma chacina de 30 ciganos - incluindo crianças e mulheres. Tenente Galinha não é personagem central em meu "Desamparo", mas seu fantasma aterroriza o imaginário dos seus atores, como fez - de fato - no interior paulista, enquanto esteve vivo.
Em uma reportagem da época, 1913, a revista Careta narra a violenta morte de Galinha chamando-o de "capitão do mato", bandeirante policial" e "mal necessário". Não parecem aleatórias as comparações de Galinha com bandeirantes e capitães do mato, cujas profissões eram escravizar indígenas, assassinar quilombolas e aprisionar negros escravizados que fugiam dos horrores da escravidão. Vale lembrar que Galinha começou a atuar na Força Policial no ano da abolição da escravidão. Considerando que Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, entre os assassinados por policiais, 79,1% são pessoas negras, não é de se questionar se histórias como a do Tenente Galinha, de um lado, e da jovem Kathlen, do outro, são casos isolados ou uma política de Estado? Como diz o ex-delegado Hélio Luz: "Polícia deve proteger a sociedade e não o Estado ou a elite".
Me impressionou saber, ainda lendo "Tenente Galinha - Caçador de Homens: Eu sou a lei!", que a Captura do Tenente Galinha fazia parte do "Batalhão de Caçadores Tobias de Aguiar", que se tornaria - anos depois - a ROTA, que segue, hoje, com a fama de matar para não levar preso, já que a justiça libertaria o "bandido". Também achei curioso que um dos homens do tenente tinha o apelido de Gambé, termo que viraria gíria depreciativa para denominar policiais em São Paulo.
Enfim, muita gente acredita que se nossas polícias matassem mais, nossos índices de violência seriam menores. Nosso atual presidente, inclusive, é um entusiasta dessa teoria assim como dezenas de programas policiais que espirram sangue nas telas familiares e transformam seus apresentadores em heróis populares. A verdade é que a polícia brasileira já mata muito há mais de cem anos, pelo menos desde a abolição da escravidão, mas a violência do país segue aumentando.
A receita do "bandido bom é bandido morto" não é uma novidade. Quando vamos admitir que essa centenária fórmula, essa antiga senhora, deu errado? Ou, então, continuaremos como dizia o já citado Hélio Luz sendo um país onde "Todos são iguais perante a lei dependendo de quanto cada um ganha". Ou, melhor, "dependendo da sua cor de pele".
*Segundo o Atlas da Violência 2020, do Ipea, foram assassinadas 57.956 pessoas em 2018. O Atlas da Violência 2019 apontava 65.602 homicídios no país.
Para saber mais
Livro: "Desamparo" (Editora Reformatório, 2018)
Autor: Fred Di Giacomo
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