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Fred Di Giacomo

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Árvore que anda: "drag monstra" da Amazônia luta por igarapés e ribeirinhos

"A Última Floresta - Fogo" - Performer: Uýra Sodoma/Fotografia e Edição: Matheus Belém
"A Última Floresta - Fogo"
Imagem: Performer: Uýra Sodoma/Fotografia e Edição: Matheus Belém

22/06/2021 06h00

Uma árvore que anda foi vista circulando em Manaus (AM). Repito, uma árvore que anda foi avistada entre os mais de dois milhões de habitantes da maior cidade da região Norte do país. Vídeos comprovam: a entidade indígena está entre nós e denuncia que a capital do Amazonas é uma das cinco piores cidades do país em saneamento básico — apenas 12% de seu esgoto é tratado. A "drag monstra", no entanto, não se contenta com o perímetro urbano da metrópole manauara, Uýra Sodoma atuou por dois anos na ONG Fundação Amazônia Sustentável, onde pôde "coordenar um projeto de arte-educação chamado Incenturita, que envolve mais de 200 crianças e jovens ribeirinhos e indígenas, e seus patrimônios culturais, em diversas localidades do Amazonas."

No princípio era o Igarapé

1 - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Emerson Pontes da Silva encarna a entidade híbrida Uýra Sodoma
Imagem: Acervo Pessoal

"O lugar era bem mais calmo que hoje. Tinha igarapés com água limpa, e praticamente todo mundo se conhecia. Eu morava com minha mãe, primas e tia-avó numa casa de madeira, à beira de um igarapé. Uma imagem muito forte era o barro amarelo, em bolotas, típico do caminho até nossa casa."

Enquanto a entidade indígena repousa, seu cavalo me conta sua história. Estamos ouvindo Emerson Pontes -- biólogo, arte educador e artista visual -- nascido em Santarém (PA), em 1991, rememorar sua primeira infância:

"Tinha um cheiro muito único e agradável. Eu sempre descia o quintal, comendo frutas, brincado com as galinhas. Gostava de ir comendo carambolas e coco até a beira do igarapé. Ali, eu falava por horas com ele. Gostava de ouvir seu silêncio e também ver os bichos que sempre apareciam de repente."

Em suas recordações, Emerson viaja para Mojuí dos Campos (PA), a cerca de três horas de Santarém, cidade onde nasceu. Ainda semente de menos de três anos, germinava, em seu interior, o futuro que eclodiria em capa da Vogue Brasil, participação no Prêmio EDP nas Artes 2020 do Instituto Tomie Ohtake e na vindoura exposição da 34ª Bienal de São Paulo.

"Ao mudar pra Manaus muita coisa mudou: lembro bem de estar chegando no porto de Manaus, dentro de um barco, de noite, aos seis anos, e me assustar com todos os prédios e luzes da cidade. A partir daí eu não sentiria mais o mesmo cheiro do barro da infância. Passei a morar em uma periferia, com casa à margem de um igarapé, mas este já era poluído, e quando enche afeta toda a habitação humana."

"As ruas das cidades tropicais têm floresta dormindo debaixo delas".

2 - Performer: Uýra Sodoma/Fotografia e Edição: Matheus Belém - Performer: Uýra Sodoma/Fotografia e Edição: Matheus Belém
"Série Mil Quase Mortos, Ensaio Caos?
Imagem: Performer: Uýra Sodoma/Fotografia e Edição: Matheus Belém

Quem fala agora? Me parece ser ela, Uýra Sodoma, uma das estrelas do especial "Falas da Terra", exibido no "dia do índio" pela Rede Globo, mais popular canal de televisão do país:

"Rua, para mim, é um lugar de [re] imaginação: as ruas são muito retas, cobriram muitas voltas de rios, e também são feitas de e do concreto, daquilo que está posto, onde a encantaria é lida como o folclore, aquilo que não existe para além da pista. Mas a rua na cidade é o seu caminho, e ela pode e precisa ser mais que uma estrutura feita para o trabalho humano que mantêm a cidade, ou um lugar de desgraça e violência aos corpos impedidos de transitar. As ruas das cidades tropicais têm floresta dormindo debaixo delas, como diz Krenak. Me movo para lembrar que Vovó (a floresta) nunca nos abandonou, ela está aqui e insiste em nos cuidar embalando nos braços."

Emerson performa Uýra, metamorfose encarnada que dialoga tanto com saber ancestral dos povos da floresta, quanto com o "Manifesto Ciborgue", de Donna Haraway, ou a "virada vegetal" de Emanuele Coccia, queridinhos da vanguarda europeia pensante, "gerando imagens que nos convocam a olharmos as florestas presentes em toda a paisagem urbana e a repensarmos arraigadas noções de 'natureza'."

Minha arte visual nasce do mato e da periferia, de ser mato (indígena) e do estudo do hábitos e habitats das coisas vivas - tudo isso se nutrindo e crescendo dentro de mim, a ponto de expressar-se: Uýra., Emerson Pontes.

"Nas comunidades [ribeirinhas e indígenas] aprendi que para que as pessoas se envolvam na preservação e defesa da Vida, é importante reinseri-las com respeito e simplicidade num processo educativo, utilizando linguagem popular. Aprendi, depois de muito cartesianismo, que o coração é importante, pois é o canal para se promover reais mudanças no mundo." Comunicar a urgência da disrupção climática que vivemos de forma simples para a maior parte da população que é excluída do debate, mas sofre suas consequências na pele, eis a sabedoria ancestral de Uýra.

A violência como paisagem

3 - Selma Maia - Selma Maia
Uýra Sodoma em Xaperipë, 2018
Imagem: Selma Maia

O Brasil é o terceiro país que mais mata ativistas ambientais no mundo. O número de desmatamento em áreas de conservação avançou 312% no último ano. Somos campeões em números totais de homicídios no mundo. Matar por aqui se tornou coisa banal, especialmente quando a vítima é LGBTQIA+, indígena ou negra. "Chega de transformar a violência em paisagem", resume Uýra Sodoma em entrevista à Mídia Ninja.

"A agressão física que sofri em 2015 foi mais uma deste tempo que habitamos. Não gosto de dizer que Uýra nasce desta ferida, mas evitá-la e cicatrizá-la em tantas outras corpas passou a guiar meus passos."

Mas a violência vivenciada por Uýra/Emerson não se restringe à agressão homofóbica na saída de um bar, vivenciada por ela. É uma violência estrutural, que marca o choque da sociedade "do povo mercadoria" em que vivemos com o que o escritor Daniel Munduruku chama de "aqueles que ainda seguram a fronteira do capitalismo, que se chocam frontalmente com isso. A última fronteira a ser conquistada." Estamos falando, é claro, dos povos indígenas.

4 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Emerson "Uýra Sodoma" passou 6 meses dando aulas de educação ambiental para crianças e jovens
Imagem: Arquivo Pessoal

"Como indígena sem povo identificado neste momento, resultado de uma diáspora do Brasil para o Brasil, eu me sinto como as urnas funerárias indígenas, soterradas para a construção da cidade colônia Manaus, ao mesmo tempo que estou hoje aqui, habitando este território junto aos meus parentes. Indígenas nesta cidade são vistos como as árvores para o avanço da modernidade: um problema, algo a ser abandonado. Por quê? Por sermos Natureza, algo que parece dever ser coberto por esta Cultura."

Mas existe, de fato, a separação entre Natureza e Cultura? Entre homem e meio ambiente? Entre cidade e floresta? Civilização e barbárie?

"A separação entre Cultura e Natureza é um problema estrutural e praticamente irreparável nas sociedades não-indígenas ou pretas atuais. De um lado, existem nós indígenas que nos compreendemos como partes de Vovó, como natureza; do outro, está a sociedade predominante, de visão e valores arraigados pela superioridade humana sobre tudo que vive, que não se vê natureza, mas dominadora dela. (...) Diversas sociedades humanas se foram e irão, mas sempre quem ficou (e ficará) foi Vovó."

A nossa espécie é muito inteligente e cheia das suas peculiaridades, mas é apenas mais uma neste mundo. , Uýra Sodoma