Fred Di Giacomo

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Pelé, caipirinha e... Sepultura? Disco fez do metal brasileiro hit mundial

Em 1993, o Sepultura já era uma banda respeitada pela maioria dos headbangers do mundo. Seus dois últimos discos pela multinacional Roadrunner ("Beneath the Remains" e "Arise") haviam recebido boa recepção do público e crítica, abrindo as portas para turnês internacionais e clipes polêmicos ("Arise") nos programas de rock pesado da Mtv gringa. Mas depois do lançamento mundial de "Chaos A.D.", em 2 de setembro de 1993, o estrelato do quarteto ficaria gigante.

Distribuído nos EUA pelo selo Epic Records, da gigante Sony, o mesmo de Michael Jackson, este disco fez com que o Sepultura saísse do lugar de "mais uma banda de thrash metal", para se tornar um fenômeno pop e jovem. Isso incluía videoclipes estourados na MTV ("Refuse/Resist" e "Territory"), shows ao lado dos principais nomes do rock (Ozzy, Pantera, Alice in Chains, entre outros) e uma popularidade mundial que talvez nenhum outro músico brasileiro tenha sustentado por tanto tempo -- e podemos incluir nessa lista Tom Jobim, Anitta e Os Mutantes. Para qualquer jovem que você perguntasse sobre o Brasil na década de 1990, ele provavelmente iria citar Carnaval, futebol, samba e Sepultura.

Tudo isso graças a uma porrada de menos de 47 minutos, produzida por Andy Wallace (que mixara clássicos do Nirvana e do Slayer) e gravada parte nos estúdios Rockfield, no País de Gales, parte no Castelo Chepstow Castle. E desse castelo "mal-assombrado" que se ouvem os barulhos de gaivota na gravação de "Kaiowas".

Mas por que falar desse marco da música pesada -- que expôs, sem discursos prontos ou cabeçudos, ambientalismo, Eco 92, povos indígenas e violência policial para o mundo -- justo agora? Porque "Chaos A.D." completou, essa semana, 30 anos.

E vale celebrar a data com um mergulho em suas faixas e histórias.

Capa do disco Chaos A.D., do Sepultura, lançado em setembro de 1993.
Capa do disco Chaos A.D., do Sepultura, lançado em setembro de 1993. Imagem: Reprodução

A hora do caos

O início do caos são as batidas do coração de Zyon, filho do vocalista Max Cavalera, no útero de sua mãe, batidas que logo se fundem com o groove de escola de samba vindo das baquetas de Igor Cavalera (naquele momento, o baterista mais influente de metal do mundo). A música é "Refuse/Resist", um petardo sônico com letra desesperada incitando a revolta. Nada mais de apocalipse e demônios nas letras dos mineiros, o inferno agora era na terra. Era a disputa de território entre judeus e palestinos ("Territory"), a destruição do nosso ecossistema ("Biotech is Godzilla"), o massacre do Carandiru ("Manifest"), o cotidiano violento no qual todos nós aprendemos a sobreviver.

"Chaos A.D." é quase um disco conceitual, um manifesto terceiro mundista, homogêneo em sua diversidade. Ele traz um Sepultura politizado, voltado para o que se passava no Brasil e experimentando novas sonoridades. Além das letras de Max Cavalera (voz e guitarra) e de Andreas Kisser (guitarra solo), o disco conta com versos de dois convidados muito especiais: Evan Seinfeld, do Biohazard, escreveu "Slave New World" (um trocadilho com "Brave New World", de Aldous Huxley) e Jello Biafra, ex-Dead Kennedys, trouxe a ecologia pro metal em "Biotech is Godzilla".

Formação clássica da banda de heavy metal Sepultura. (Foto: Divulgação)
Formação clássica da banda de heavy metal Sepultura. (Foto: Divulgação) Imagem: Divulgação
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Um grito tribal corta a modernidade

Talvez você já saiba, mas vale repetir: o Sepultura foi criado em Belo Horizonte, no ano de 1984, pelos irmãos Max e Igor Cavalera inspirados por bandas como Venom, Motörhead, Slayer e Celtic Frost. A eles se juntaria, pouco depois, o baixista Paulo Jr. Seus primeiros discos apresentavam uma sonoridade extrema — um death metal com letras satânicas que influenciaria muito os noruegueses da segunda onda de black metal. A partir da entrada do guitarrista Andreas Kisser, no álbum "Schizophrenia", o grupo passou a fazer um thrash metal agressivo, com letras mais realistas e influências de bandas como o Metallica.

Passada a fase mais ortodoxa, que para muitos fãs é a melhor, o Sepultura de 1993 misturava metal, hardcore e rock industrial com sons brasileiros (fusão que chegaria ao ápice no disco seguinte, o best-seller "Roots"). Cabia aí, então, a acústica "Kaiowas", um protesto contra a situação dos indígenas dessa etnia que se suicidavam devido à invasão de suas terras pelos homens brancos. Os críticos compararam a música (que incluía percussão e solo de viola) a Led Zeppelin ("Kaiowas" lembra "Friends", em seu começo) — com a diferença de que, enquanto o Led misturava seu rock com sons asiáticos e africanos, o Sepultura fazia a fusão com o som da sua própria terra.

Meu pai escutava muita música sertaneja, especialmente Tonico & Tinoco e Sérgio Reis, tinha muitos discos. Eu ouvi Tonico & Tinoco antes de "Smoke on the Water" [música do Deep Purple].

Andreas Kisser, em entrevista para Ecoa.

A partir de "Chaos A.D." quem se interessasse pelo futuro do metal poderia procurar o Sepultura. O disco é considerado por muitos como influência básica no que viria a ser o nu-metal de Korn, Slipknot e cia e também no movimento conhecido como "new wave of american heavy metal". O próprio Korn teria passado horas ouvindo esse disco, enquanto gravava seu clássico álbum de estreia. No disco dos brasileiras já estavam as afinações graves, as guitarras minimalistas e dissonantes, os vocais falados e as baterias quebradas, que dominariam as paradas mundiais anos depois. Corey Taylor, vocalista do Slipknot, considera "Roots", do Sepultura, um dos melhores discos de metal da história.

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Mas voltemos ao aniversariante do ano. O clima desse álbum é pesado e violento; a trilha sonora de um futuro ciberpunk dominado por megacorporações e fanáticos religiosos ("Amen"). O guitarrista Andreas Kisser deixou de lado, aqui, seu virtuosismo, para tirar novos timbres de sua guitarra uivante, o baixo de Paulo Jr (que gravou suas próprias linhas pela primeira vez nesse disco) vinha muito grave, como um terremoto, cheio de efeitos, casando com o bumbo duplo furioso de Igor Cavalera, um gigante nas baquetas, que injetava swing no hardcore mais agressivo e desacelerava os tempos em faixas mais cadenciadas, como "Nomad" e "Propaganda", ajudando a moldar o que seria o groove metal defendido por bandas como Pantera e Machine Head naquela mesma década. Para termos uma noção de quão grande estava o Sepultura nesse período, vale lembrar que Igor chegou a ser convidado para assumir as baquetas de quem... Guns N' Roses! E mandou um "Lógico que não!" para Axl e cia.

Bandeira Nacional com aplicação do símbolo da banda Sepultura, no Hollywood Rock, em São Paulo.
Bandeira Nacional com aplicação do símbolo da banda Sepultura, no Hollywood Rock, em São Paulo. Imagem: Cesar Itiberê/Folhapress/Cesar Itiberê/Folhapress

Brasil no topo?

Chamar o "Chaos A.D." de marco no rock dos anos 90 pode parecer pretensioso, mas não é injusto. As 12 faixas desse disco já ganharam versões de bandas importantes como Trivium, Apocalyptica, Krisiun, Ratos de Porão e Hatebreed. Os franceses do Gojira costumavam tocar "Territory" nos seus shows, assim como os pernambucanos do Chico Science & Nação Zumbi, que a inseriam no meio do seu hit "Da Lama ao Caos".

A edição brasileira da revista Rolling Stone incluiu o álbum na na 46ª posição da lista dos 100 maiores discos da música brasileira. A Rolling Stone americana, por sua vez, considerou-o o 29º melhor álbum de metal de todos os tempos. Dave Grohl (frontman do Foo Fighters e batera do Nirvana) disse que, se não existisse o Motörhead, esse seria o melhor disco de metal do mundo. Nada mal para um bando de moleques que só queria imitar o Venom.

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A partir de 1993 todas as bandas brasileiras puderam sonhar em competir de igual pra igual com os gringos, sem precisar deixar de lado a brasilidade. Pensamento que seria a base para um outro caos vindo da lama dos manguezais de Recife, mas isso é outra história?

Uma versão muito rudimentar desse texto foi publicada previamente, em 28/10/03, no saudoso site The Watchtower, quando Chaos. A.D fez dez anos.

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