Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O chamado de uma médica para ocupar as ruas no dia 29
Essa médica que defende isolamento social está me chamando para ocupar as ruas dia 29?
Sim, eu sou médica e, sim, eu estou há praticamente 14 meses em casa, saindo somente pra trabalhar e comprar comida. Com exceção da última semana que passei no meio do mato, quase incomunicável e sem contato com outras pessoas que não fossem a minha família, estou esse tempo todo indo da UPA para a minha casa, da minha casa para o consultório, do consultório para a o quintal da casa da minha mãe, onde eu e meus pais nos falamos a quatro metros de distância e ainda usando máscara.
E, sim, eu estou participando ativamente da organização dos atos que ocorrerão no próximo sábado, dia 29 com objetivo de resistir a este morticínio.
Desde que tornei pública a minha participação na organização destes atos, fui questionada por diversas pessoas, de esquerda e de direita, sobre o que para elas soava como uma imensa incoerência:
"Então, quer dizer que você defendeu isolamento e agora está incentivando pessoas a irem às ruas? Isso é absurdo! É irresponsabilidade!"
Vejam, eu também queria muito que a nossa única preocupação neste momento fosse nos proteger do vírus, buscar boas máscaras distribuídas pelo governo, receber informações relevantes para a manutenção da nossa saúde e trabalhar para que a vida fosse aos pouquinhos ficando cada vez mais próxima da normalidade que conhecemos. Eu não queria ir a lugar algum! Queria seguir aqui quietinha, dentro da minha casa.
Ocorre que a realidade é outra e ela é duríssima para milhões de brasileiros que não só não podem trabalhar como também não sabem o que vão comer nas próximas horas. Há irmãos e irmãs nossos, gente trabalhadora que constrói esse país há séculos e que ou está trabalhando 14 horas por dia para sobreviver ou não tem trabalho e espera ansiosamente por uma vaga em uma empresa que vai explorá-lo 14 horas por dia, sem vínculo trabalhista para lhe pagar um salário insuficiente. Há, entre estes irmãos, pessoas que perderam três, quatro familiares, amigos, amores para uma doença que poderia ter tido seus impactos ao menos reduzidos com medidas relativamente simples. Há brasileiros e brasileiras que estão sendo despejados em ações criminosas que os deixam sem abrigo em meio à maior crise sanitária que veremos na vida.
Não se briga com a realidade e com os fatos. Eles se impõem. É nosso dever avaliar cuidadosamente o que acontece e escolher com sabedoria e responsabilidade a melhor forma de construir alternativas para uma reação organizada a este estado de coisas.
Não é razoável e nem honesto comparar um ato de resistência a este genocídio com uma aglomeração aleatória, sem máscara, distanciamento ou qualquer cuidado frequentemente promovidas pelo morador da casa de vidro.
São quase meio milhão de pessoas mortas e se isso não é suficiente para justificar meu posicionamento, o que posso te dizer é que, se nada for feito, as previsões de morte até o fim do mandato deste cavaleiro da morte são ainda mais assustadoras.
Uma parte da esquerda brasileira parece ter escolhido o caminho de aguardar os 19 meses que faltam para o desligamento desta câmara de gás que se tornou este país. É uma escolha possível, contudo ela demanda que consideremos aceitável a morte de outro meio milhão de pessoas.
O vírus, ao contrário de nós, não está cansado. A pandemia não vai se resolver por caminhos mágicos. Aliás, dia após dia, ela dá sinais de que se renova e se fortalece com o surgimento de novas variantes mais transmissíveis e mais agressivas. A solução, ou um caminho em direção a esta solução, está em ações muito objetivas que este governo já deixou claro uma centena de vezes que não vai tomar.
Por que não distribuem máscaras PFF2, comprovadamente mais eficientes para prevenir a transmissão? Por que não decretam a obrigatoriedade do uso de máscaras em espaços públicos? Por que não distribuem testes, ao contrário, deixam que se percam nos estoques federais? Por que não aumentam o rigor nos aeroportos e portos para evitar a chegada de estrangeiros infectados com novas variantes? Por que não garantem ao menos a sobrevivência daqueles milhões de trabalhadores desempregados e famintos? Por que não compraram vacinas suficientes para que este ritmo apavorante de vacinação pudesse ser acelerado?
Entre as respostas possíveis para tais enigmas, eu fico com estas: há quem lucre com a nossa morte e o nosso sofrimento. Há bilionários ficando mais bilionários, há grupos recebendo de bandeja o controle do Banco Central, as reformas de Guedes cujos únicos objetivos são retirar direitos duramente conquistados pelo povo brasileiro. Há compra de deputados e há boiadas passando pelos nossos biomas.
Por trás da decisão de ocupar as ruas há a convicção de que uma manifestação ao ar livre, com uso de boas máscaras, máximo afastamento e higiene das mãos é infinitamente menos perigosa para a saúde do povo brasileiro do que mais dezenove longos meses sob o comando de um governo assassino e incrivelmente incompetente. Ou seria competentíssimo em destruir o país e matar pessoas?
Há em mim uma imensa vontade de seguir aqui dentro de casa me protegendo ao máximo e protegendo minha família. Contudo, para quem deseja construir um país mais justo, há um compromisso de alma, principalmente com aqueles mais vulneráveis. Aqueles que provavelmente sequer sabem que estamos nos organizando para resistir no próximo sábado.
Nós vamos com medo, mesmo, mas também vamos cheios de cuidado. Vamos distribuir quantas máscaras PFF2 conseguirmos comprar, vamos manter o máximo afastamento possível, vamos orientar e educar os nossos quantas vezes forem necessárias, como já viemos fazendo em atos anteriores.
Ficar em casa e deixar que Bolsonaro siga arquitetando outras centenas de milhares de mortes hoje me dá mais medo que ir às ruas para lutar por vacina, por comida e pelo nosso direito de viver.
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